Meu avô, o general Vassallo e Silva

No final da minha prova oral da 4ª classe, a professora da escola oficial onde fiz exame, dado que era aluno do ensino particular, chamou-me e segredou: quais os nomes do senhor Presidente da República e do senhor presidente do Conselho de Ministros? Pronunciei nomes - que hoje mais do que nunca me custam a rever - e, mesmo tendo nove anos, percebi de imediato que a estranheza da situação se devia apenas a um facto: ao apelido que possuo com muito orgulho - Vassallo e Silva. Um nome que, como compreendi desde cedo, não me deixava passar despercebido e que provocava uma admiração efusiva ou discretamente cúmplice, que me enchia de orgulho, ou, mais raramente, um certo desdém.O orgulho e a enorme admiração que sempre tive pelo meu avô Manuel António Vassallo e Silva, se é plenamente explicável pelo extraordinário homem que foi - a figura pública é apenas um discreto reflexo de uma personalidade imensamente rica e generosa, como podem testemunhar todos os que o conheceram -, é-o também, embora em menor medida, pela consciência da ostracização de que foi vítima, pela forma como agiu enquanto último governador-geral da Índia Portuguesa. Muito mais tarde vim a saber que a censura tinha instruções para nunca deixar que se referissem a ele como general.Tendo nascido seis meses antes da invasão de Goa pelas tropas de Nehru, fiquei, tal como toda a minha família, intimamente ligado a este episódio e à tremenda coragem de um homem que, plenamente consciente do seu gesto, assumiu de frente a responsabilidade da rendição das forças portuguesas na Índia em oposição às ordens de Lisboa e a uma política irrealista de vitimização por parte de Portugal. O regime, consciente de que o julgamento do governador-geral não seria mais do que um julgamento da política vigente, optou pelo caminho cobarde da simples expulsão do exército do general e dos seus militares mais chegados, alguns dos quais de imensa juventude, e pela punição dos restantes militares. Tudo isto ao fim de um pretenso inquérito de dois meses, donde nunca surgiram quaisquer acusações. Dentro da necessidade de procurar culpados e, de algum modo, de atenuar reacções internas das Forças Armadas, outro militares da Índia viriam a receber louvores e mesmo condecorações. A história, contudo, não se orientou na direcção que o regime salazarista desejava e, mesmo tendo em conta que não foi ainda feita total justiça aos militares de Goa, para muitos ainda é hoje muito viva a memória da chegada dos soldados de Goa, após o cativeiro, e das atitudes provatórias do regime: a recusa em preparar quaisquer medidas de repatriamento dos prisioneiros, as emissões radiofónicas (através da Emissora Nacional) para os militares presos ou a tremenda humilhação do desembarque em Lisboa, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, sob a ameaça das armas. Em Goa, durante o cativeiro, ou no continente, após a humilhação, meu avô nunca se poupou a esforços para elevar a moral de todos os seus camaradas. A minha interpretação do designado "Caso de Goa", assumidamente afectiva e mesmo familiar, de algum modo faz parte da minha herança, e o mesmo sucede com todas as famílias directamente afectadas por tão triste episódio. As minhas investigações no campo da História da Arte levaram-me à Índia, pela primeira vez, em 1996. Foi em Goa que realmente entendi o enorme apreço e estima de meu avô por aqueles antigos territórios portugueses e pelas suas gentes. Estima plenamente correspondida, como testemunha o convite a meu avô, em 1980, para visitar Goa, de onde partira 19 anos antes. Haverá poucos casos semelhantes na história do colonialismo europeu. As descrições comovidas de meu avô da recepção apoteótica e carinhosa que teve na Índia foram-me plenamente confirmadas quando visitei Goa. As manifestações oficiais incluíam um encontro em Nova Deli com a então primeira-ministra Indira Ghandi - cancelada pela brusca morte do seu filho, Sanjay -, e uma multidão rodeou o seu hotel, durante os dias que permaneceu em Goa, e aclamou-o ao longo de todo o seu trajecto entre Pangim e Margão. "Tal como no tempo em que era governador", como mais tarde me contaram.O carinho do povo goês não se deve apenas ao facto de ele ter evitado um banho de sangue durante a invasão. Orgulho-me de saber que os territórios portugueses da Índia alcançaram, durante o governo de meu avô, militar e engenheiro civil, um enorme progresso material, económico e mesmo cultural.Nos seus primeiros três meses em Goa, ele concebeu e cumpriu escrupulosamente um plano de melhoramentos para o quadriénio 1959-1962. As exportações de minério foram então plenamente desenvolvidas, permitindo ao Governo do Estado da Índia investir em infra-estruturas como as pontes de Sandalcano, em Margão, de Zuari, em Cortalim, e de Gugires-Betim, sobre o Mandovi, na renovação dos caminhos-de-ferro e portos, na modernização de hospitais, na construção de escolas e "casas do povo", no ensino do Português e na recuperação do riquíssimo património local.O meu avô foi detido com minha avó, que se recusou a abandoná-lo, e foi o último militar português a sair de Goa. Desembarcou no aeroporto de Lisboa no dia 16 de Maio de 1962, num terminal com as luzes apagadas, onde uma multidão gritou "Vassallo e Silva! - Vassallo e Silva!" e não "Salazar, Salazar", como diziam os jornais do dia seguinte. Do Governo, apenas compareceu, provavelmente a título pessoal, o ministro das Obras Públicas, Arantes de Oliveira, um amigo para todas as horas.Em Lisboa, expulso do Exército, o meu avô paterno ingressou como engenheiro na empresa de obras públicas do meu avô materno, António Veiga Lda. O Governo de então pressionou as câmaras do Alentejo a não lhe darem trabalho, mas ele trabalhou até ultrapassar os 80 anos.Todos os Natais, três gerações reuniam-se para almoçar em casa de meus avós. A campainha da porta nunca se calava, eram antigos militares da Índia a visitar o "seu general" e eram encontros impressionantes, mesmo para nós, os netos mais pequenos. Nos últimos anos que antecederam a revolução de Abril, a minha tia-avó Maria Lamas, regressada do exílio em Paris, também se juntava a nós. Recordo igualmente, com muitas saudades, as explicações do meu avô, quando nós, os netos, tínhamos alguma dificuldade nos estudos, que ele acompanhava com o maior interesse.Com o advento de Marcelo Caetano, surge a possibilidade de, finalmente, se reabrir o processo de Goa. Lembro a luta de meu avô, que acabou em mais uma desilusão. Só após o 25 de Abril, ele se viu reintegrado no Exército e pôde voltar a vestir a farda que tanto o orgulhou ao longo de 40 anos. Só este gesto, que proporcionou a meus avós uma imensa felicidade, me torna imensamente grato ao movimento de Abril, aos militares que não esqueceram o "caso da Índia", aos membros da comissão de revisão do processo, Carlos de Azeredo, Engrácia Antunes, Alexandre de Morais, Rodrigues de Oliveira e Sousa Carrusca, e aos generais Spínola e Costa Gomes. Os ecos que recebemos de Goa, através da imprensa geral, de cartas, e mais tarde, do convite ao meu avô para visitar os antigos territórios que teve sob seu governo, são por si sinais do julgamento que a História fez de um homem que soube manter-se firme e assumiu as suas responsabilidades, mantendo viva em Goa uma imagem de Portugal, ou se preferirmos de um português. Nada conseguiu apagar isso, nem a força das armas da União Indiana, nem a política de ignorância/silêncio de Salazar.

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