Os locais de Lisboa onde o crime acontece

A entrada do piso térreo da estação, que alberga um pequeno centro comercial, está povoada com aqueles clichés do medo que fazem com que o transeunte se certifique da carteira: um jovem toxicodependente encostado à parede com ar de zombie, um maltrapilho embriagado, um esquizofrénico vociferando sozinho, imigrantes aparentemente sem fazer nada, a olhar quem passa. Dois agentes da PSP impõem alguma tranquilidade. Mas não chegam para as necessidades. "Fui assaltada mesmo ali, na Caixa Geral de Depósitos", diz Ana, do interior de uma cabine cubicular que serve de posto de anúncios do "Correio da Manhã", sem outra abertura a não ser o parlatório. "Aqui é comum. Ainda ontem houve zaragata", acrescenta. António Conrado, segurança privado contratado pelo Metropolitano de Lisboa, confirma os roubos, mas garante que já foi bem pior: "De vez em quando aparecem aí uns 'mitras', como a gente lhes chama, a palmar umas sandes nas lojas ou umas carteiras às velhinhas. Ambiente pesado só mais à noite, quando o pessoal das obras começa a encher os cafés e a embebedar-se." Nas mãos e no pescoço de Isabel, 36 anos, sentada no banco da frente da carruagem, já não reluzem os adornos de antigamente. Há ano e meio seguia a pé na Rua Agostinho Neto, na Quinta do Lambert, ao Campo Grande, quando um jovem lhe arrancou o fio de ouro de 15 mil escudos com um puxão. "Desapareceu a correr. Ainda pensei contactar a polícia. Mas para quê?"Apesar da degradação dos prédios, da degradação do pavimento, da degradação das pessoas, a avenida consegue manter um cosmopolitismo e uma vida comercial que a tornam única. Pela Almirante Reis passa todo o tipo de delinquência, do tráfico de droga à prostituição, até aos assaltos comuns. Todos os lisboetas o sabem, todos os lisboetas se queixam, mas todos continuam a frequentá-la.As lojas caras de mobiliário contrastam com os caixotes a transbordar de lixo cá fora: não haverá nenhuma outra rua do centro da cidade tão suja. Os sem-abrigo aproveitam as caixas de cartão que os comerciantes amontoam no passeio e refugiam-se nas reentrâncias dos prédios, para se protegerem do frio e da chuva. Em alguns sítios cheira a urina. A calçada é um corrupio de gente, de todas as cores, de todas as raças. As velhinhas cirandam, meio assustadas, de loja em loja, estabelecimentos antigos onde ainda se arranjam cuecas de corte clássico e se é atendido por um alfaiate obsequioso. "Podia só fazer-lhe uma pergunta?", pede o jornalista a uma senhora de cabelo branco, carteira ao ombro - espalmada pelo braço esquerdo, agarrada pela mão direita e se mais houvesse. A interlocutora fica em pânico: abana timidamente a cabeça, estuga o passo e prossegue, sem dizer nada."É todos os dias", reclama a jovem empregada do outro lado do balcão do Paraíso do Chile, uma loja onde se vende de tudo, de rolos de papel higiénico a cestos de verga. "Ainda há pouco um miúdo de oito anos queria sair com um pacote de bolachas escondido no blusão."Um pouco mais à frente, mesmo à entrada do metro de Arroios, está o quiosque de Abdul. Debruçados no corrimão, ao cimo das escadas de acesso ao túnel, uma prostituta e um proxeneta olham desconfiados a máquina fotográfica e o bloco de notas do PÚBLICO. Há já algum tempo que a Rua José Falcão, mesmo ali ao lado, se tornou num centro de prostituição, alegadamente controlado por taxistas.Abdul já não lhes dá atenção. "Está muito melhor de há duas ou três semanas para cá, desde que acabaram com as barracas da Curraleira. Havia de cá vir antes: era para aqui um corrupio todo o dia; saíam do metro disparados por aí acima, para comprar a dose; parece que estavam atrasados para apanhar o avião." O problema continua a ser a loja de conveniência, em frente, "aberta a desoras". "A primeira coisa que faço quando aqui chego, às 7h00, é lavar o chão com lixívia. A gandulagem vem para aqui beber de madrugada e partem garrafas e conspurcam isto tudo."Estamos no coração da cidade, onde há mais turistas e onde, por esta altura, há uns anos atrás, costumava haver mais Natal. Aqui sim, vêem-se muitos agentes da polícia: no espaço de 100 metros, dois PSP fardados e um à paisana (das Brigadas Investigação Criminal), mais dois da Polícia Municipal. O homem das brigadas recusa falar sobre insegurança, mas sugere: "Vocês deviam era ir ao Intendente." O jornalista não sugere, mas pensa: "Vocês também." Em frente à loja da Louis Vuitton, uma senhora idosa, enrolada em peles, espia as malas. A abordagem volta a ser difícil: perante a aproximação, a senhora "sprinta", resmungando entredentes, sem deixar de olhar a calçada: "Quatro vezes. Chega-lhe? Já fui assaltada quatro vezes, e uma delas em Fátima." O dia já está a meia luz e assaltantes nem vê-los. Perguntamos por eles ao pregador José Saraiva Martins, o homem mais assíduo da Praça do Rossio, megafone na mão a fazer de coluna de som, e um rádio de táxi preso por uns arames ao pescoço, a imitar os microfones sem mãos de que Madonna foi precursora. "Satanás às vezes manda aqui uns diabinhos para me fazerem mal, mas o Senhor protege-me, e eles acabam por não me fazer nada. Esta menina que está aqui a vender castanhas, por exemplo, ao início, chateava-se de me ouvir; uma vez até me mandou com a banca dos postais e das bíblias abaixo. Agora é minha amiga."A Joalharia do Carmo, na rua do mesmo nome, já não tem a porta aberta ao público. Quem quiser entrar tem que esperar que o proprietário, Alberto Sampaio, a destranque. "O ano passado entraram aqui três tipos, um distraiu-me, o outro distraiu a minha mulher, e um terceiro agarrou numa jarra de 700 contos, que estava naquela mesa, e levou-a debaixo do blusão sem eu dar conta." Na montra ao lado, da loja da estilista Ana Salazar, Ana de Sousa, apresentadora do Caderno Diário da RTP, 24 anos, responde com um sorriso. "Não, nunca me aconteceu nada." Precauções também só toma à noite: "Quando saio de uma discoteca é que tranco logo as portas do carro, não vá o diabo tecê-las."Continuando a subir o Carmo, em frente aos Armazéns do Chiado, na Rua Nova do Almada, está um dos sítios passíveis de ser procurado por criminosos. A placa, cá fora, diz "Soldiers, Aventura e Sobrevivência". A loja fica na cave. Três jovens, a quem dificilmente o Pai Natal arriscaria dar uma faca de plástico que fosse, sobem as escadas, em segredos e risadas. Lá em baixo, pistolas, caçadeiras e todo o tipo de espingardas, botas da tropa, coldres e outro material de guerra. "Não temos registado um aumento da venda de pistolas: a média talvez seja uma por semana. Não é fácil comprar uma arma", explica o empregado. Num canto do estabelecimento vendem-se suásticas e braçadeiras das SS. Sem necessidade de licença. Era a penúltima estação da rota que havíamos traçado. A composição do metro parou na estação dos Restauradores. As portas abriram-se: primeiro saíram os que iam lá dentro, como sempre acontece, depois entraram os que se encontravam à espera. Uma jovem, com uma bolsa ao ombro, é das últimas a entrar, já com o apito do fecho das portas a soar; quase é derrubada por um homem, arrancando em sentido contrário, cerca de 30 anos, que lhe puxa a carteira ainda com tempo de fugir para fora da carruagem. Uma tentativa - falhada - de roubo por esticão. Gera-se um burburinho entre os passageiros, reclama-se contra o mundo e contra ao que isto chegou. A jovem, pálida, verifica se a carteira ficou lá dentro. Final feliz.

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