Diagnóstico da modernidade

O "diagnóstico da época", que Peter Sloterdijk e Carlos Oliveira tentaram, cedo ficou irremediavelmente desactualizado, num mundo em que os acontecimentos se sucedem a uma velocidade estonteante. Ainda assim, perante o 11 de Setembro, o livro contém algumas noções visionárias.

Peter Sloterdijk nasceu em 1947 na Alemanha. Carlos Oliveira nasceu em 1962 em Espanha. Sloterdijk ensina Filosofia e Estética na Escola Superior de Belas-Artes de Karlsruhe, na Alemanha e publica regularmente desde o início dos anos 80. Carlos Oliveira estuda Filosofia em Munique e tem dedicado parte importante do seu trabalho a entrevistar filósofos, escritores e outros artistas. No dia 4 de Setembro de 1994, entre as 11 da manhã e as duas e meia da tarde, juntaram-se em Munique e gravaram a conversa que deu origem a "Ensaio Sobre a Intoxicação Voluntária". Um ano depois do diálogo que a Fenda agora edita, Sloterdijk produziu acrescentos e anotações à transcrição feita por Carlos Oliveira. Extractos desta mesma conversa foram retomados em duas emissões radiofónicas difundidas pouco depois do encontro entre os dois homens e, dois anos mais tarde, novamente usados para produzir uma cassete áudio com a chancela das edições Carl Auer.A distância entre as versões oral e escrita da entrevista provocou em Sloterdijk como em Carlos Oliveira a tentação de uma nova conversa. Se aqui explico (transcrevendo) tudo isto é porque compreendi que o "diagnóstico da época" que os dois pensadores tentaram, cedo se tornou um diagnóstico irremediavelmente desactualizado, num mundo em que os acontecimentos se sucedem a uma velocidade estonteante, transformando à mesma velocidade teses visionárias em factos consumados. Para sofrerem menos, Peter Sloterdijk e Carlos Oliveira decidiram relativizar a importância dos "temas com perfil de filosofia cultural", remetendo os acontecimentos posteriores à conversa para o sempre providencial saco das irrelevâncias. Para não se perderem "numa selecção arbitrária de acontecimentos que seriam todos sintomáticos de alguma coisa".Embora sob a forma de uma entrevista (o que, na minha opinião, não simplifica a vida ao leitor português), este "Ensaio Sobre a Intoxicação Voluntária" contém na essência as qualidades do ensaio enquanto género. O facto de este se sustentar numa conversa acrescenta virtudes interessantes a este diagnóstico da modernidade, atribuindo um papel orgânico e actuante à filosofia contemporânea. Lamentável é que não exista em Portugal tradição na publicação de diálogos (e/ou entrevistas) - género sobejamente apreciado na Alemanha. Por outro lado, a importância do filósofo "como médico da cultura" é aqui exemplarmente recuperada, projectando as equações formuladas muito para além do imediatismo dos temas que lhes serviram de pretexto.Nesta altura em que os acontecimentos de 11 de Setembro de 2001 mundializaram o debate, o "Ensaio Sobre a Intoxicação Voluntária" é um livro fundamental pela quantidade e pela qualidade de raciocínios que importam ao novo contexto. Um contexto inédito, cuja génese Peter Sloterdijk e Carlos Oliveira abordaram nesta conversa, no decurso da qual conceitos como "a ideia de Deus", o binómio indivíduo/mundo, o "estado de implosão" (Baudrillard), a "divinização do Presente" ou "o último homem" (Nietzsche) convergem para este mesmo novo contexto, contribuindo de forma inequívoca para o enriquecimento do debate.Triste é repetidamente constatar que, no essencial, no que ao denominado tempo contemporâneo respeita, há muito que quase tudo está dito, num mundo em que o princípio da realidade se sustenta no mito, numa ausência ténue de fronteiras que a cultura do mito alimenta. As pretensas solidez e impermeabilidade dos Estados Unidos não passavam afinal de um mito, constituindo não um mas vários filmes.O "Quadrado Preto" de Kasimir Malevich - a que Sloterdijk faz referência - é a representação disso mesmo, ou seja, do "fim da análise". "Esta é a minha tese" diz Sloterdijk: "A cultura experimental não pode produzir outra coisa senão esta posição final quase budista - toda a profundidade é superfície, todo o conteúdo é forma. (...) É precisamente o que podemos saber desde os anos 20 do século XX."A ausência de "um mundo completo" para herdar, numa sociedade em que a tradição está esvaziada de sentido e em que "o mundo para sonhar" se projecta "num horizonte mitológico" encenado e servido numa bandeja, nomeada e particularmente através da televisão, remete-nos para "o monge do vazio, o Quadrado Preto sobre duas pernas" que nos habita a todos."Não precisamos de trabalhar durante anos nem de seguir uma formação para nos convertermos ao budismo. A televisão transformou-nos a todos em budistas, entregamo-nos todos involuntariamente à meditação. (...) A televisão é a última técnica de meditação da humanidade." A ironia do pensamento de Sloterdijk é cruel, mas se servir para agitar as consciências letárgicas dos "budistas" telespectadores portugueses terá valido a pena. Digo eu, que - vivendo neste país em que uma maioria esmagadora de pessoas possui pelo menos um televisor em casa e em que ver televisão é a actividade (actividade?) mais praticada pelos "budistas"' portugueses de todas as origens, idades, bolsas, aspirações - prescindo de bom grado de um televisor.E, à semelhança do que acontece de todas as vezes em que abordo a temática do televisor, não posso deixar de recordar Boris Vian, numa canção em que se explica por que é que um televisor virado ao contrário (contra a parede) é uma solução decorativa com potencial conceptual. Em suma: KISS (Keep it Simple, Stupid) - in "Dicionário dos Ciber-Acrónimos Frequentemente Utilizados".Um indício de luz pode, no entanto, avistar-se na sequência de todos os radicalismos. "A redução terrorista é útil para despertar uma consciência da fragilidade das formas de vida positivas sobre um fundo niilista." Impõe-se assim o recomeço - que outra coisa fazer? Depois do apogeu, há que poder produzir um novo apogeu. Porque, diz Sloterdijk, "nós queremos o apogeu, sim, mas o apogeu com dia seguinte". Ao que Carlos Oliveira responde com um "Viva o depois! E o mais-uma-vez!""Ensaio Sobre a Intoxicação Voluntária" é uma obra incómoda e exigente. E, tal como defendem Peter Sloterdijk e Carlos Oliveira quando partem do pressuposto justo de que é preciso estarmos suficientemente intoxicados pela realidade para sermos capazes da introspecção que preside a toda a análise honesta, também este livro carece de uma imersão total por parte dos leitores portugueses, eventualmente menos receptivos à leitura de diálogos.No posfácio, Peter Sloterdijk afirma esperar "que os leitores sejam suficientemente generosos, autónomos e rigorosos para completar a partir dos seus próprios conhecimentos e da sua experiência o que aqui permanecer impreciso ou inexpresso".Aí reside, em última análise, a derradeira grande virtude de todos os que contribuíram para que este livro exista - agora em português: a generosidade. Generosidade dos autores, que, de forma sublime, se entretiveram a dessacralizar a filosofia. Generosidade dos editores, que compreenderam a necessidade de tornar pública uma atitude arrojada e contrastante relativamente à forma e ao conteúdo do pensamento filosófico contemporâneo dominante. Generosidade, por fim, da tradutora Cristina Peres, que entende - no meu entender, muito bem - que uma tradução é sempre "uma proposta de tradução" e que considerou o desafio da Fenda "irrecusável". Porque se trata da filosofia de hoje - da objectivamente contemporânea -, porque "a língua alemã sumariza" para a tradutora "a consciência global das línguas estrangeiras e a sua medida de resistência relativa" e porque a entrevista, "com as especificidades de um diálogo filosófico", constitui para a jornalista Cristina Peres uma forma nobre "de estruturação do pensamento".

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