D. Quixote na rota imaginária

São quilómetros de terra plana onde as nuvens se concentram nos raros montes que se espalham pela Mancha, região espanhola percorrida por D. Quixote e Sancho Pança há cerca de 400 anos. É sobretudo em Toledo que as nuvens tomam as formas mais fantásticas - e que El Greco tanto pintou.Há quem descubra a ironia da própria terra, como o poeta Casimiro de Brito, porque a natureza está imutável passados centenas de anos - "compreendo melhor o Quixote depois de ver esta terra plana, imensa, irónica, à qual as casas e as pessoas se adaptaram". E há quem tenha sentido que percorrer assim a Mancha é uma viagem imaginária, onde "se olha não para aquilo que se vê, mas para o que supomos que o Quixote viu", diz a escritora Hélia Correia. "Entramos um pouco nesse jogo do cavaleiro andante", nessa "perseguição dentro da ficção, inclusivamente da ficção biográfica" - visitam-se lugares apontados como tendo sido os de Cervantes, mas que muitas vezes "foram criados pela própria população local". Durante quatro dias, três escritores portugueses - Casimiro de Brito, Hélia Correia e José Bento, também tradutor de castelhano - e um grupo de jornalistas, guiados pelo director da Oficina Espanhola de Turismo em Lisboa, Jaime-Axel Ruiz Baudrihaye, e pela cervantista portuguesa Fernanda Abreu, percorreram uma das possíveis rotas de D. Quixote, o herói da obra "O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de La Mancha", de Miguel de Cervantes.O percurso seguido foi Alcalá de Henares, Toledo, Consuegra, Argamasilla de Alba, Almagro, El Toboso e Puerto Lápice, mas Quixote está presente em toda a região manchega. É a partir de um pátio interior que se entra na Casa Museu de Cervantes, situada numa rua onde alguns estabelecimentos comerciais têm nomes alusivos a D. Quixote, como o café Dulcineia, evocação que se repetirá ao longo de todo o percurso. Composta por dois andares, a casa tem expostos vários objectos do século XVI - há os quartos com móveis e utensílios vários, estrados cobertos de tapetes, a reprodução de um local de convívio feminino. Foi nesta localidade, situada a poucos quilómetros de Madrid, que viveu Cervantes, mas é pouco provável que a casa que se visita seja aquela onde o escritor nasceu, em 1547. A reconstrução reproduz uma casa abastada da época, quando se sabe que a família de Cervantes era pobre. Há, no entanto, os registos de baptismo em Alcalá e sabe-se que Cervantes escreveu aqui os seus primeiros poemas, em 1568, encomendados por Lopez de Hoyos, reitor da Universidade de Alcalá (na altura, a mais conceituada do país, a par da de Salamanca), onde também estudaram, por exemplo, Quevedo, Góngora ou Lope de Vega. Na cave, passa um vídeo sobre a vida do escritor, contada na primeira pessoa, mas, além do texto lido em voz "off" não ter sido escrito por Cervantes, muitos dos factos ali apresentados não são fiáveis - é certo que esteve em Itália como soldado ao serviço de Don Juan de Áustria por volta de 1564-1570, que em 1571 embarca para a batalha de Lepanto onde perde a mão esquerda, ou que em 1575 é preso pelas tropas turcas e feito cativo na Argélia, de onde tentou fugir várias vezes, algo que só consegue em 1580, ano em que vai para Madrid. No primeiro andar, expõem-se exemplares de "D. Quixote..." em vários idiomas (do persa ao islandês, do turco ao hebraico), uma edição com litografias de Salvador Dalí, a primeira tradução da obra, para inglês, datada de 1612, ou uma segunda edição impressa em Lisboa, por Jorge Rodrigues. A primeira parte da obra, editada em 1605, foi um verdadeiro sucesso: teve seis edições nesse ano, numa altura em que a maioria da população não sabia ler nem escrever. No século XVI, Toledo era ponto de encontro de artistas e encruzilhada de culturas (árabe, judaica, cristã) e albergava uma das maiores escolas de tradução do país. Ainda hoje, depois de se atravessarem as muralhas árabes de Toledo, passeia-se pelas ruas labirínticas da parte antiga da cidade, banhada pelo Tejo, e podem visitar-se catedrais, igrejas e sinagogas ou as ruínas de um circo romano. É em Toledo que o narrador de "D. Quixote..." diz ter encontrado o manuscrito do historiador árabe Cide Hamete, onde se conta a história de Alonso Quijano, homem que, enlouquecido pela leitura (não distingue a realidade da ficção), toma como seus os ideais dos cavaleiros andantes - paz, honra e justiça - e decide "endireitar os tortos". Para isso, disfarça-se de cavaleiro e adopta como nome de batalha D. Quixote de La Mancha - e já aqui há uma ironia porque a Mancha foi sempre uma região pobre. D. Quixote é, assim, fruto de uma criação em cadeia: Cervantes cria Cide Hamete que cria Alonso Quijano que cria D. Quixote, personagem inspirada nos romances de cavalaria e sobretudo no modelo de Amadis de Gaule. Ao criar esta artimanha, Cervantes "desresponsabiliza-se" do conteúdo da obra. Para Fernanda Abreu, o escritor tinha um programa político, social, cívico e ideológico (de que são exemplos os discursos da pastora, que proclama a liberdade de amar ou o de D. Quixote aos cabreiros, em que defende a igualdade, fraternidade, a abolição da propriedade privada). Mas, ironicamente, também vai "minando a historicidade" com notas posteriores que descredibilizam Cide Hamete, como, por exemplo: "Já se sabe que os árabes são mentirosos." No fim do livro, o processo de criação inverte-se: Quijano, o homem solitário que vive afogado em livros, cuja vida está impregnada de literatura, "mata" D. Quixote. Fá-lo através de um "discurso de abnegação" que corresponde a uma renuncia ao sonho e à luta de transformação da realidade, o projecto utópico que havia empreendido por a realidade não servir os seus desejos e sonhos.Da planície de Consuegra, vêem-se ao longe os moinhos, datados do início do século XVI, hoje recuperados e utilizados duas vezes por ano para as festas da cidade. Estão situados em montes onde o vento polar de Outono pode desencorajar muitos a saírem dos carros ou camionetas. Mas vale a pena a visita, sobretudo ao castelo, construído (e destruído) em diversas épocas - as primeiras edificações datam do século XII -, de onde se avistam os campos com as três culturas dominantes da região: a vinha, a azeitona e o trigo. Elemento simbólico fundamental em "D. Quixote....", os moinhos - que não são necessariamente os de Consuegra, até porque na obra não se faz referência exacta ao local - eram uma novidade na altura. Quixote toma-os por gigantes, mesmo com as salvaguardas de Sancho Pança. "Corresponde ao primeiro momento de grande admiração, ao processo de transmutação de D. Quixote. E isto é uma revolução epistemológica porque valoriza o ponto de vista do observador, valoriza tanto o ser como o parecer, estilhaça a univocidade e a verdade única."Cervantes, pela voz de Sancho, inventa a palavra "bassielmo" para se referir a algo que não é uma bacia nem um elmo mas a junção dos dois, e institui assim "uma ambiguidade que dá ao leitor a liberdade de construção de sentidos." Em Consuegra, explicará depois o guia, lê-se a obra de Cervantes na escola, aos 14 anos, fazem-se também leituras e D. Quixote está na memória popular, mesmo que muitos não tenham nunca lido a obra. É a terra da amada que D. Quixote inventa inspirando-se em Aldonza Loureiro, uma lavradeira por quem em tempos se havia enamorado e a quem decide dar o nome de Dulcineia - porque todo o cavaleiro tem uma amada, assim ditam os romances de cavalaria, também ele tem que ter uma a quem dedicar as suas aventuras. El Toboso quase parece uma cidade imaginária: está lá o Museu Cervantino (que tem uma colecção de exemplares de D. Quixote em vários idiomas, sendo os mais surpreendentes os que têm as assinaturas de Hitler ou Mussolini); a reprodução do que poderia ser a casa onde viveria Dulcineia (com um magnífico pombal); as lojas e cafés citam a obra e as ruas chamam-se Cervantes, Aldonza Lorenzo, Sancho, García Lorca, Antonio Machado, Calderón de la Barca...Sobre Dulcineia, diz D. Quixote a Sancho: "Pinto-a como a desejo." Para Fernanda Abreu, a Dulcineia, uma imagem, "corresponde a uma projecção do desejo, não existe fora disso" e, mais do que inspirada na realidade social e política da época, foi construída a partir "de modelos literários". Fernanda Abreu acha, no entanto, que em "D. Quixote" há mulheres muito mais interessantes do que Dulcineia, como a pastora Marcela ou a mulher que aparece travestida de homem, a Doroteia. "Uma mulher muito viva, culta, que tem uma sensibilidade suficientemente fantasiosa e criativa para conseguir ser cúmplice de D. Quixote. Percebe a mecânica do jogo quixotesco e sabe jogá-lo ao mesmo tempo que o ajuda a mostrar-se."É só no final do livro que é revelado o lugar exacto da Mancha onde nasceu Alonso Quijano, o personagem que se transforma em D. Quixote. "Cervantes diz que o lugar não tinha sido referido para que nenhum local da Mancha ficasse ofendido, para que qualquer aldeia se apropriasse da personagem", explica Fernanda Abreu. Na versão de Aquilino Ribeiro, o narrador começa por dizer: "Em certo lugar da Mancha cujo nome direi amanhã" e não "de cujo nome não quero nem recordar-me". Ao introduzir a ideia de futuro, Aquilino desvirtuou o projecto de Cervantes, defende Fernanda Abreu, porque ao negar a referência aos lugares Cervantes está também a romper com as regras aristotélicas que determinavam que o narrador deveria informar os leitores do local onde se passaria a acção. Será esta a última visita da viagem. Puerto Lápice é onde se situa a Venta, reprodução de um local onde D. Quixote e Sancho paravam para comer. É um restaurante típico pensado para turistas, com lojas cheias de "recuerdos" alusivos à obra, onde se pode comer alguns dos pratos regionais. Espaço de encontros entre pessoas que também têm histórias para contar, e onde sempre acontece algo susceptível de se transformar em episódio, a Venta é um lugar onde Quixote e Sancho vão encontrando potenciais contadores de histórias. "Também simboliza um ritual iniciático, funciona como templo e em certa medida simboliza todas as ventas que ele vai encontrando ao longo do caminho. É também um espaço onde ele ou supera provas ou dá provas da sua sabedoria, sempre acompanhado do seu companheiro e, portanto, protegido. A seguir, converte os encontros em conversas íntimas com o Sancho". Fernanda Abreu compara-o ainda a espaços presentes na literatura de viagem, género que também se pode aplicar à obra de Cervantes.

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