Ciganos de Francelos (Gaia) na paz relativa do Olival

Um grupo de palmo e meio, em roda viva, junto à entrada de um dos blocos do Bairro de Olival, em Vila Nova de Gaia, diverte-se num jogo recentemente inventado. Do intercomunicador soa, quase sem cessar, uma cantilena numa voz infantil. E as crianças que se encontram na rua, de mãos estendidas sobre um pote de ferro que acolhe uma fogueira, vão respondendo. Uma algazarra daquelas de levar as mãos aos ouvidos. "É lenha a arder", entende ser necessário explicar a pequena Alexandra Monteiro Rossio, de nove anos. Ainda há pouco tempo, nenhuma destas crianças de etnia cigana saberia lá muito bem usar um intercomunicador. Viviam, com as 27 famílias, em barracas de zinco erguidas num terreno contíguo à Avenida de Francelos. Foi por ordem do Tribunal de Justiça, e num clima de tensão fortemente favorecido pela presença de um gigantesco aparato policial, que se transferiram provisoriamente para a Serra do Pilar. E foi sob grandes protestos da população local que, em Setembro último, foram instalados ali, no Bairro de Olival. Jorge Monteiro Rossio, onze anos, lembra-se bem do dia do despejo. Ao todo eram 59 crianças incansáveis - a montar e a desmontar risos e choros por entre bailaricos, cantorias e cenas de pancadaria - e outros tantos adultos raivosos. Jorge até se meteu em cima de uma bicicleta, nuzinho como quando veio ao mundo, para uma passeata, ri, ao recordar. Desde esse soalheiro dia de Maio que não vai à escola, conta. "É preciso arranjar a papelada para passar da escola de Francelos para a escola daqui", sublinha, encarrancando-se. Não vai ele e não vai nenhum das outras crianças. A recordação é, de rompante, quebrada pela chegada esbracejante de uma senhora. Avó de muitos, a mulher do patriarca Francisco. "Estámos fartos de jornalistas! Vão-se embora!", vocifera. "É uma bruxa!", gritam as crianças em seu redor. E a mulher pega no pote de ferro com a fogueira e leva-o para dentro. "Vai levá-lo para a sala, a bruxa!", diz Jorge. "Vai pegar numa vassoura e vai-se largar a voar por aí", brinca Alexandra. Gestos coreográficos vão sendo esboçados pelos pequenos. A mulher regressa a praguejar: "Vão-se embora! Já disse! Vão-se embora!" E as crianças, encardidas, abrem-se em sorrisos e em encolheres de ombros. "È uma bruxa", repetem.Seguindo a via que separa os primeiros blocos da nova urbanização social, duas jovens discutem de modo feroz numa língua estranha. Ana Maria Rossio Soares explica que um filho de uma é maior e bateu no filho de outra. As jovens de longos cabelos sossegam e a mulher corpulenta dispõe-se a conversar. "Estamos bem aqui, as casas são boas, só que isto é longe", começa por enunciar a senhora Ana, "mãe de doze filhos". "A canalha ainda não está na escola. A gente, em Francelos, já tinha vizinhos amigos, as mercearias davam fiado, a gente recebia o abono e ia lá pagar; agora é preciso andar a pedir", expõe. O que Ana queria era que "a câmara viesse aqui dar comida, como fazia na Serra do Pilar". E enquanto a senhora, de ar gentil, dá conta das vantagens e desvantagens da mudança, um homem irrompe a frisar que já não aguentam mais com os jornalistas que os seguem para todo o lado. A senhora Ana compreende a insistência, mas diz que agora já há "bom convívio com a vizinhança". "O povo andou chateado uns dias, não queria os ciganos aqui", desfia. "Eles tinham medo, há muito cigano bom e há muito cigano mau, na sua raça também é assim", continua. "As pessoas já não estão contra nós, já viram que não fazemos mal a ninguém", conclui.Escola e trabalhoÀ roda da senhora Ana, um redemoinho de crianças que não vão à escola desde Maio. "O que tenho falta? Os livros, o material, tudo ficou em Francelos", solta Marco Antero Rossio. Tem onze anos e não sabe ler. "Agora é só desenhos e bicicleta". A mulher volta a dizer que é preciso tratar da "papelada". Perto do blocos, operários parecem absortos num trabalho de instalação de electricidade. A luz que cada uma das 27 famílias recebe "é provisória, está sempre a ir abaixo", diz Bernardo Rossio, o filho mais velho do patriarca Francisco. "Eu agora é que sou o chefe", declara do pé para a mão. "A câmara meteu-nos aqui sem isto estar pronto", lementa, de olhos alongados para os trabalhadores. "Quando andavam todos contra nós, quando andavam para ai a fazer manifestações, a fechar escolas e a correr para a câmara, lancei um apelo na SIC ao chefe deles [Manuel Nunes, que encabeçava o movimento de protesto contra a instalação dos ciganos em deterimento das 160 famílias da freguesia previamente inscritas para habitação municipal]", diz Bernardo. "Ele veio aqui falar comigo, ele tinha medo do futuro, de desordens, de actos de violência, eu disse-lhe que ele tinha de esperar para ver", conta. "Agora está tudo calmo, eles não se metem com a gente e a gente não se mete com eles", remata.

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