Torne-se perito

"A América quer o ouro do Afeganistão"

O presidente do Paquistão pode encontrar-se com George W. Bush e depois dormir descansado. O extremismo islâmico no seu país não tem força para o derrubar. Ontem, em Peshawar, Quetta, Rawalpindi e Dera Ghazi Khan (no Punjab), as pessoas que aderiram ao apelo de uma greve geral, todas juntas, não chegavam para uma manifestação a sério. Mas houve quatro mortos em Dera Ghazi Kahan, muitos detidos e gás lacrimogéneo quanto baste.

Foto

"Band karo, band karo, band karo!". Os extremistas islâmicos tentaram tudo, ontem de manhã, para que os comerciantes de Peshawar, cidade do noroeste do Paquistão próxima da fronteira com o Afeganistão, encerrassem os seus pobres estabelecimentos e se juntassem à jornada de luta convocada pelos partidos religiosos pró-taliban. "Band karo! Fechem as lojas!".

Chegaram a juntar-se uns 200 ou 300, mas sem cartazes nem bandeiras, e com poucas palavras de ordem: a sua missão era forçar a adesão à greve, para que a manifestação prevista para as 14h00, logo a seguir aos serviços religiosos das 13h30, não deslustrasse de outras realizadas recentemente.

Andavam, pois, em pequenas guerrilhas, discutindo com os que se recusavam a obedecer. Muitos comerciantes preferiram entrar num jogo do gato e do rato com eles, fechando as portas metálicas quando os ouviam a chegar e abrindo-as de novo assim que os viam pelas costas. Era uma trapalhada, é certo: era preciso recolher os materiais expostos no passeio (t-shirts e cartazes de Osama bin Laden, alguidares com pedaços de cana de açúcar e sumo de romã, pevides, bananas, bugigangas, roupas) e recolocá-los depois. A princípio, a polícia não se preocupou. Um pequeno piquete, armado com bastões de bambu e granadas de gás lacrimogénio, e protegido por longos escudos, seguia-os a uma distância que permitia uma intervenção rápida, caso fosse necessário.

Mas, após duas ou três voltas ao quarteirão, o grupo ressurgiu mais agressivo ainda. Alguns manifestantes empunhavam agora imagens de Osama, "o herói do Islão", e gritavam, em pashtun (língua e etnia da maioria dos habitantes da região, assim como dos taliban), para os desobedientes: "Lojas que estão abertas, tenham cuidado! Vocês são os responsáveis pela sua segurança". Outros dedicavam-se a tarefas mais políticas: "Cemitérios para os americanos no Afeganistão!", "Somos contra todos os não-muçulmanos, sejam cristãos, judeus ou outros", "Estamos com Osama e com os taliban". De repente, ouvem-se disparos de lança-granadas de gás lacrimogénio e o grupo desfaz-se numa correria desenfreada e em lágrimas ardentes. Mas rapidamente se reorganiza, uns 500 metros mais adiante, os rostos já cobertos com lenços para minorar os efeitos do gás. "Taliban-taliban! Taliban-taliban!".

Reuters

O graduado que lidera o piquete policial apressa os seus homens, com gestos rápidos e enérgicos, porque eles acabam de desaparecer numa rua à direita. Correm os polícias, correm os jornalistas, correm os curiosos. Mais disparos. Solta-se uma nuvem de fumo amarelo que não tarda a envolver toda a gente. É a maior das confusões. Chocam os polícias com os manifestantes, os manifestantes com os jornalistas, os jornalistas com os comerciantes. Um sabor acre na boca, as narinas a arder, os olhos em brasa. Soube-se depois que os fundamentalistas tinham atacado os polícias com pedras. Surge como que do nada um carro blindado equipado com uma metralhadora. Dá duas voltas rápidas pela zona e estaciona debaixo de uma árvore frondosa. O efeito dissuasor resulta. O líder religioso do grupo é detido - e suplica: "Não me prenda, deixe-me ir embora" - e os que ainda estão na expectativa de algo mais são vergastados e põem-se a milhas dali. Agora, é tempo de procurar água para limpar os olhos e a boca. Mais tarde vem a saber-se, pelo superintendente Muhammad Suleman, que foram feitas, ao todo, umas 20 detenções.

"Exército dos Discípulos"

Ainda decorre o ofício religioso das 13h30 nas duas maiores mesquitas de Peshawar quando chega a notícia de morte de quatro pessoas em Dera Ghazi Khan, uma cidade do centro do país, na província de Punjab. Ali, a polícia não esteve com meias medidas - atirou a matar. Há também informações que dão conta de alguns distúrbios em Rawalpindi - uma cidade vizinha de Islamabad, a capital - e em Quetta, no Baluchistão, mas nada de muito importante. De Lisboa, pergunta-se se é verdade que há três polícias reféns em Peshawar. Não é verdade. E se há mortos em Rawalpindi. Também não é verdade. Está tudo numa grande agitação, mas só há vítimas em Dera Ghazi Khan.

A principal manifestação do dia, convocada pelo partido ultra-extremista Sipa-e-Sihaba Pakistan (SSP), que quer dizer "Exército dos Discípulos" - não há bandeiras do JUI, o mais influente destes grupelhos fundamentalistas -, começa a formar-se pelas 14h00 em frente à Qasim Mosque, a mais importante mesquita da cidade. Os líderes - os mullah Khaoim Hussein e Khalifa Abdul Qayuw - participam nas cerimónias de outra mesquita. Hão-de chegar mais tarde, escoltados por guarda-costas armados e com cara de poucos amigos. Alguns são árabes. E devem andar por ali também taliban e espiões americanos disfarçados de muçulmanos. Os fiéis começam agora a sair da mesquita, onde a cerimónia, entretanto, se transformara num verdadeiro comício. Empunham cartazes e engrossam o grupo que já está na rua, em volta de uma camioneta em cima da qual o mullah Hussein, ao lado de um espantalho de Tony Blair, há-de, meia hora depois, proferir um longo e monocórdico discurso à Fidel Castro.

"Parem com a III Guerra Mundial", diz um cartaz. "Porque é que a ONU não acha que as atrocidades em Caxemira, na Palestina e na Bósnia são terrorismo?", questiona outro. "Ó muçulmanos, unam-se contra a cruzada!", incita um terceiro. "O Afeganistão precisa de comida, cobertores e tendas, não de bombas!", assinala um outro. E o resto é dedicado à América, o "grande terrorista internacional". A polícia, agora também com viseiras e armas de fogo, forma duas barreiras, deixando entre ambas um espaço de cem metros, no qual, se houver distúrbios, os manifestantes poderão ser encurralados. Recua à medida que a frente começa a avançar a avançar. Gera-se alguma confusão, até porque as televisões se interpõem entre aquela mole de não mais de duas mil pessoas e a polícia. Fugas precipitadas, atropelos. Tensão. Há muitos olhos sedentos de violência, há muita má-vontade contra os estrangeiros.

O comício realiza-se uns 500 metros mais à frente. Berros: "Osama não é terrorista, é um grande soldado do Islão!", "Os pobres e os indefesos estão contra a América!", "Musharraf, tem vergonha!", "Longa vida a Mullah Omar [líder dos taliban]". Silêncio agora. Vai falar o mullah Hussein. "A América não está a combater o terrorismo nem Bin Laden, a América quer tomar o Afeganistão por causa das suas minas de ouro e diamantes!". E mais: "Se há evidências contra os taliban e Osama nos ataques de 11 de Setembro, porque não revelam essas evidências ao povo?". E mais: "Prometo que combateremos a América até ao juízo final!". O resto do que diz está nos cartazes. Um deles, mostra um porco-diabo muçulmano a lidar um touro aliado, com a frase: "Combate de civilizações". O mullah Hussein termina finalmente o seu monólogo. Corta-se o pescoço ao espantalho de Tony Blair e espezinha-se o corpo. A manifestação vai morrendo sem incidentes. O general Pervez Musharraf, presidente do paquistão, pode estar descansado. Não vai ser com certeza o extremismo islâmico a determinar a sua queda em desgraça.

Imagem da página da edição de 10 de Novembro de 2001 do PÚBLICO onde este texto foi originalmente publicado

Sugerir correcção