Conversa com vista para... Maria de Lourdes Pintasilgo

Recebeu-me em sua casa, com Lisboa a-toda-linda ao fundo, por uma cinzenta tarde de Outono. Maria de Lourdes estava de verde caqui. Elogiei-lhe a camisa solta sobre calças da mesma cor. Subiu-lhe um rubor ao rosto, por uns instantes, mas de imediato sorriu, com o mais desarmante dos sorrisos, a disfarçar o embaraço.É com os olhos, brilhantes de curiosidade, que começa por seduzir quem tem pela frente. Até que o pensamento e as palavras que o traduzem aqueçam a inibição do arranque e a conversa surja com a naturalidade, contagiante, de quem sente um enorme prazer em ser questionada. Conheço poucas pessoas tão gulosas de ideias, tão sempre à escuta do que pode ser portador de uma mudança, boa, para o curso deste tempo. Deste tempo que vive como seu, nosso, de todos. Deste tempo que teima em entender, chamando a si vários ângulos de leitura, de abordagem, para que a acção sobre o real se desenhe outra, mais diversa, mais fecunda. Absorve as ideias - de quem a surpreende e interpela - como se delas estivesse exactamente à espera, sem deixar por isso de reconhecer o valor do impacto criado e de agradecer a quem delas lhe deu testemunho novo. Depois, digerido o seu conteúdo, parte a propagá-las, como quem sente como dever de vida o espalhar dessas sementes, tentando a lavra em terreno alheio, onde espera e acredita que, como nela, se vão poder desenvolver a ponto de rasgar trilhos novos. Da novidade e estímulo desses trilhos é que tece a compreensão de tudo o que é, de tudo o que nos faz ser o que somos, acrescentando-nos um sentido diferente. Espera e acredita que esse sentido diferente se faça dinamicamente imprimir no modo como vivemos e, sobretudo, como desejamos viver. Move-se no mundo como se numa grande casa, que habita como sua. O que a move nesse mover é uma convicção de raiz - a de que a felicidade é um objectivo de vida, que é preciso desejá-la muito, cada um e todos, para cada um e para todos. Esse objectivo matricial não pactua com desatenções, nem com abusos. Por isso é que Maria de Lourdes Pintasilgo não se consente a si própria o silêncio, o encolher de ombros, a renúncia de intervir. Vive em permanente estado de alerta, pronta a denunciar erros, pronta a desvendar alternativas, os tais outros trilhos. Será por isso que a dizem sonhadora, utópica?MLP - Tive que fazer um exercício de introspecção para responder a esse desafio que me coloca. Acho que sou, antes de tudo o mais, uma pessoa fascinada pelo saber e por passear entre os saberes. É uma atitude quase gulosa por saber, por querer compreender. Não falo de um saber especializado, mas de um passeio entre saberes, de uma ligação entre formas diversas de conhecer e de sentir. Sou também visceralmente movida pelo dever. Não é tanto o dever em relação a qualquer coisa que passou, do génerof+b f-b"decidi isto, ou comprometi-me com aquilo, logo tenho de fazer assim"f+b, f-bmas é antes um dever que é como que uma chamada do futuro para agora. É um dever que diz "é preciso fazer isto que ainda não foi feito", é um chamamento do que ainda não está. Embora a noção de dever tenha a ver com a minha história, com a minha família e com os valores familiares dominantes, é o outro dever de que lhe falei que é estrutural. O terceiro traço, pode parecer estranho referi-lo no momento que vivemos, é um gosto muito fundo, uma sensação de pertença sem limites ao mundo. Uma sensação muito forte, no sentido de que pertenço ao sítio onde estou. Nunca me senti desligada, nunca consegui estar a ver de fora os sítios por onde passei, onde estive algum tempo ou de que apenas conheço imagens das pessoas, das terras, das culturas. Tudo isto tem que ver, evidentemente, com viagens, mas não tem só a ver com viagens. Onde estou, estou com esse mundo e, portanto, sou uma pessoa que carrega (a palavra é forte, mas é a que melhor revela o que quero dizer) também com aquilo que vem de um relacionamento múltiplo, muito variado, com pessoas, histórias, situações. São redes muito diversas, com graus de afectos e de expressão muito diferentes. Foi-me dado ser assim, está cá dentro. O primeiro contacto com qualquer realidade estranha transforma-se imediatamente num vínculo, sem eu própria saber muito bem como o hei-de alimentar depois. Vamo-nos escrever, vamo-nos manter em contacto, não nos vamos perder? É outra forma do saber e do dever, muito importante para mim, uma forma muito sedutora, que abre para belezas insuspeitadas, para afectos inesperados, mas que também é uma carga, porque tem de ser constantemente alimentada e isso, devo confessá-lo, nem sempre ocorre espontaneamente. Exige um grande esforço. Aqui tem, como resposta à sua questão brotaram estas três dimensões da pessoa que sou.MJS - Gostava de tentar escalpelizar, com a sua ajuda, cada uma dessas dimensões. O "passear entre os saberes" faz de si uma pensadora eclética?MLP - De modo nenhum. Cada vez tenho mais a consciência do imenso que não sei. Cada vez aprecio mais o saber rigoroso, profundo, interrogativo. O meu passeio entre saberes assenta na convicção de que a formação que adquirimos pelos estudos que fizemos dá-nos uma matriz de apreensão das coisas, uma forma de atenção, um modo particular de apanhar a realidade. Não se trata de ser especialista num domínio e depois ter umas pinceladas do que alguns chamam cultura geral. Ora não é de cultura geral que estou a falar. Conheci um italiano que enunciava este passear como uma descida ao centro da terra, até ao magma fundamental; vamos descendo até lá, até encontrarmos e reconhecermos o magma e depois iniciamos a subida de volta à superfície, já de outro modo, já não iguais ao que éramos no momento da descida. Estamos aptos para ver e sentir e conhecer outras coisas. Ao longo da vida tenho sentido que, gradualmente, vou pegando em áreas diversas, vou sendo seduzida pela novidade de cada uma e vou encontrando ao mesmo tempo referências comuns que circulam entre umas e outras. É nessa circulação que o meu pensamento gosta de viajar, de passear. Dou-lhe um exemplo: nos últimos dez anos fiz parte do Conselho de Ética para as Ciências da Vida, na sua maioria constituído por médicos. Muitas das questões que discutíamos eram mais do foro da Medicina, longe portanto do campo específico da minha formação, mas verifiquei que nos encontrávamos e nos compreendíamos com grande naturalidade. O passear entre os saberes é isso, não passa por uma especialização em tudo, mas sim por uma capacidade de apreensão e de compreensão da "outra" coisa. Tive um director de trabalho, com ideias opostas às minhas, a quem perguntei um dia o que pensava do meu envolvimento na política. Disse-me que o que eu estava a fazer era "engenharia social".Do meu ponto de vista era outra coisa, mas ele quis dizer que eu estava a utilizar a estrutura de pensamento e os instrumentos práticos que o curso e a prática de engenharia me haviam dado. Um livro editado pela UNESCO, cujo título é justamente "Entre-Saberes", exprime esta atitude como parte da teoria da complexidade - tudo tem afinal a ver com tudo. Tive a sorte de viver num tempo em que reflexões deste tipo foram ganhando corpo e influenciaram o meu modo de pensar, fundamentando aquilo que, em mim, era apenas uma atitude espontânea.MJS - Antes de passarmos à segunda dimensão, diga-me se lhe acontece, ao ler um livro, ao ver um espectáculo, ao ouvir alguém, sentir o espírito a abrir, sentir o correr de uma cortina?MLP - De que maneira! Ainda recentemente tive duas emoções fortes. Uma foi com um espectáculo de teatro, no Rio de Janeiro. A outra foi com um filme, numa sala de cinema em Lisboa. A peça é recente (levada à cena em Londres em 1998 e em Nova Iorque em 2000), chama-se "Copenhague" e é do autor inglês Michael Trayn. A acção passa-se nos anos 40 (com incursões no passado e no futuro) e trata-se de um diálogo entre os dois grandes físicos: Heisenberg, o cientista do princípio da incerteza, do grupo que ficou na Alemanha nazi, que não foi para os Estados Unidos ajudar a aprofundar aquilo que mais tarde seria a bomba atómica e, Niels Bohr, o físico dinamarquês que permaneceu na Dinamarca, então ocupada pelos nazis. Em 41, Heisenberg vai a Copenhaga visitar o colega, que admirava profundamente como Mestre, e discutir com ele o dilema da decisão de ficar ou de partir. A peça é um espantoso traço de união entre a ciência, a arte e a ética. Através da conversa entre os dois homens, não se trata só do deslumbramento pela beleza da ciência mas desmonta-se o mito da neutralidade da ciência, toca-se no lugar da ciência na vida cívica da pessoa, reconhece-se a procura das justificações para o que fazemos e para o que os outros fazem. É retomada na peça como um "leit-motiv" a grande interrogação: o que é que vou fazer, qual a solução, no momento em que a estrada bifurca qual dos lados vou escolher? Gostaria muito de ver esta peça nos palcos portugueses. Quanto ao filme, chama-se "Os Respigadores e a Respigadora", de Agnés Varda. Vou pouco ao cinema, mas achei este filme um bálsamo para os olhos e para o espírito. Em certo sentido é um filme pós-moderno, fragmentado, passando de uma coisa para a outra, ligando a criação artística - a pintura - à realidade, aos factos da vida e conseguindo, ao mesmo tempo, fazer a recomposição do mundo. Usando uma metodologia fragmentada, o filme consegue recompor, com inteligência e sensibilidade, o mundo dos desperdícios, do que deitamos fora, do que deixamos para trás, do que parece inútil e vai afinal reconstituir o universo de quem vem respigar depois de nós.MJS - Gosta de "dar notícia" de tudo o que a impressiona?MLP - Imenso! (Se calhar, até demais para quem me ouve!) O que me impressiona não é para ser digerido sozinha, não é para ficar fechado em mim. A história é feita desta articulação contínua de saberes e de emoções estéticas. Sinto necessidade de convidar outros a participarem da emoção que alguma coisa nova causou em mim e confrontar-me depois com as reacções sentidas. Trata-se de partilhar e de fazer circular e fico afectivamente muito presa e infinitamente grata às pessoas que mostram interesse em saber o que vivi, o que conheci e senti.MJS - A segunda dimensão é a do "dever sobre o que ainda não é" e pode ser lida como uma característica arrogante e quase profética, de quem sabe mais do que os outros, que só sabem do que já é, só conhecem o que já está. Peço-lhe que me explique melhor o verdadeiro sentido desse seu sentido do dever.MLP - Profeta é o que anuncia qualquer coisa, anuncia qualquer coisa lá onde está, pode anunciar uma coisa evidente, uma coisa que toda a gente vê mas que não sabe nomear e é o profeta que lhe dá um nome. Sem querer entrar no campo das profecias, acho que há no mundo, em cada situação, momentos e aspectos que estão lá e que nem sempre conseguimos ver. Este sentido do dever que lhe referi é mais o resultado de uma atenção que decorre do facto das coisas me interpelarem. Fazem-no na sua globalidade, enquanto conjunto.Acho que em todas as situações há uma porta que pode ser aberta, a tal cortina que se pode correr ou rasgar. Gosto e quero continuar a estar atenta, pronta a abrir as tais portas, a rasgar as tais cortinas. Quando as coisas que senti como podendo ser o futuro num determinado momento não se cumprem nesse momento, vindo a ser cumpridas só muito mais tarde, não me consola nada poder dizer - Bem vos avisei! Há aqui um problema metafísico que é o da nossa intervenção na História. A plena realização é a possibilidade de que o nosso momento subjectivo, resultado de uma evolução pessoal, coincida na juntura exacta com o momento histórico objectivo, exterior a nós. Isso não acontece a todos e é raríssimo que aconteça. Mas não podemos desistir e dizer "Pronto, falhámos esta oportunidade!", porque haverá outras oportunidades, de outra maneira, noutros lugares, com outras perspectivas. Estar preparado para essa mudança de cenários não é fácil, mas é por essa atitude que passa o sentido do meu sentido do dever. MJS - Já lhe aconteceu ter consciência de estar coincidente e em sintonia com essa juntura do tempo histórico?MLP - Tenho a sorte de ter sentido isso algumas vezes. A primeira vez que tive essa sensação, nítida e muito forte, foi quando conheci o Graal, tinha eu vinte e sete anos. Andava, desde muito nova, interessada na questão do que é ser mulher, por que é que os homens fazem determinadas coisas e asmulheres outras, por que é que os homens são educados de uma maneira e as mulheres doutra. Queria aprofundar esse ser mulher para além dos cânones estabelecidos. Entretanto, vinda embora de um meio onde a fé e a religião não eram muito presentes, tinha-me tornado numa cristã convicta, num momento em que muitas das formas do cristianismo no nosso país eram muito fechadas, não iam às fontes. E eu sentia um grande desejo de aprofundamento, para o qual não encontrava resposta em Portugal. Tinha também tido, enquanto estudante, a possibilidade de viajar e de viver intensamente a dimensão internacional da vida, com o conhecimento e a mistura com outros povos, outras culturas, outras formas de viver e de pensar. Tudo isto era como um puzzle dentro de mim, com peças diversas mas igualmente importantes. Quando encontrei o Graal (um pequeno grupo, como uma tribo!), foi um momento de grande felicidade, porque sendo um movimento internacional de mulheres cristãs, o Graal reunia todas essas peças que faziam parte de mim, das minhas inquietações, das minhas demandas e eu dei-me conta de que aquilo que era uma atitude individual, existia afinal colectivamente. Mais tarde aconteceu outro momento, dessa mesma ordem de intensidade, que durou alguns anos. Começou com o 25 de Abril e a minha entrada para o primeiro Governo Provisório e foi até ao termo da minha chefia do V Governo Constitucional. Vivi cinco anos de qualquer coisa extraordinária, onde senti que tudo o que tinha vivido até aí e aquele momento histórico estavam profundamente ligados. E que era óbvio que eu tinha que estar ali e não noutro sítio. Esse período teve aspectos muito intensos, portadores de uma imensa satisfação. Vivia-se, realmente, a ideia de que o futuro estava ali, ao alcance da mão, a ideia de que o futuro é já hoje.MJS - A chefia do V Governo Constitucional foi de algum modo assumida como uma missão desse tempo de felicidade?MLP - Como missão? Nem pouco mais ou menos. Nem missão, nem sacrifício. Foi vivida integralmente como tempo de felicidade, de poder pôr em prática muitas ideias, de poder decidir sobre a realidade, para o bem das pessoas. A-do-rei! Não tenho outra expressão para caracterizar o que senti naquele período.MJS - Chegámos à terceira dimensão estrutural da sua pessoa - a "pertença". Como é que a conjuga na sua dupla vertente, por um lado a temporal, que é a História, por outro a do espaço, que é o Mundo?MLP - Quando falo em pertença, falo na convicção de que neste espaço tão diverso estamos todos ligados uns aos outros, de uma maneira que não é moralista, estamos ligados porque existimos. Ouvi recentemente um congressista argentino dizer "Nascemos para estar unidos". É essa a minhaconvicção profunda. Estamos unidos por parcelas, é evidente, porque a Humanidade no seu conjunto é uma abstracção e o que fazemos é ir criando múltiplas redes, variadas, diferentes umas das outras, mas que nos confirmam os traços de união, também eles renovados e, muitas vezes, surpreendentes. Esta atitude elimina a ideia de que - os meus amigos são as pessoas que andaram comigo na escola primária ou que vivem no meu bairro ou que trabalham no mesmo sítio que eu. E também deita por terra outra ideia, a de que - no meu tempo é que era bom! Nada disso, o meu tempo é agora, o outro já passou, fez parte da minha história, é a minha história. O agora é que é o meu tempo, no sentido do "kayros" grego, do agora como momento oportuno. E é no sítio onde estou que o vivo. Esse agora (lugar e tempo) é fortíssimo e quando encontramos as pessoas num agora especialmente intenso, ou seja, num tempo muito significante (quer pelas suas possibilidades, quer pelas suas ameaças) as ligações que estabelecemos ficam em nós de uma forma muito profunda. Um exemplo concreto disto são as relações que mantenho com algumas das pessoas que fizeram o 25 de Abril e com quem convivi mais de perto. Criou-se entre nós uma espécie de fraternidade que é mais forte do que se tivéssemos feito a escola juntos.MJS - Se "nascemos para estar unidos", qual é a natureza da fronteira que nos separa dos que não pensam assim, não desejam que seja assim e se batem contra essa ideia?MLP - É uma fronteira que não podemos derrubar só pela vontade. Na minha vida não luto contra essas fronteiras. Continuo, isso sim, a aprofundar a ideia que me move, sempre na esperança de que os que pensam de outro modo acabem, pelo menos, por reconhecer a legitimidade científica e ética do que proponho. Ao nível das grandes questões sociais e políticas, o ponto que levanta é muito difícil, muito complexo. Quando li nos jornais que o governo americano deu ordens à CIA para encontrar Osama Bin Laden "vivo ou morto", senti um arrepio. Um arrepio com muitos séculos de recuo. Há, segundo nos dizem, provas que o evidenciam como principal responsável pelo horror dos ataques terroristas de 11 de Setembro, mas uma decisão deste tipo sai fora da legalidade do convívio internacional e, assim sendo, também afecta a tal ideia filosófica de estarmos unidos pelo facto de existirmos, porque é um atentado à dignidade humana no seu fundamento. É um crime a responder a outro crime. Há uma ordem democrática internacional que foi sendo criada ao longo de 50 anos, com instrumentos judiciais próprios e o que é preciso, para estar à altura dessa ordem, é levar Bin Laden e os demais responsáveis da sua organização terrorista a responder perante esses mecanismos judiciais, os únicos com competência para os julgar e condenar. A minha convicção de que estamos todos juntos, faz-me dizer "Não, não estou propriamente no tempo do far-west, nem vou tirar a pistola do colt para abater o inimigo!". Pertenço, pelo contrário, a um mundo que até criou um Tribunal Penal Internacional que deve ser respeitado.MJS - Há quem diga que o ataque às Twin Towers foi mais importante do que o ataque ao Pentágono porque, ao atingir um símbolo muito forte da actividade económica e financeira, fez sangrar o coração da civilização ocidental, visando valores que são os únicos que essa mesma civilização respeita e venera - os valores materiais. Qual é a sua leitura?MLP - Por que é que só se fala praticamente das Torres e se retira protagonismo ao Pentágono? Penso que aqui há uma certa cumplicidade entre alguns meios de comunicação e o Estado americano, porque seria reconhecer que o coração de um Estado com grande força militar tinha sido atingido. Isso os Estados Unidos não podem, nem querem reconhecer da mesma forma e daí um certo lugar de sombra em que ficaram as vítimas, militares e civis, que morreram na ala destruída do edifício do Pentágono. Mas, de um ponto de vista simbólico, os dois alvos atingidos no dia 11 de Setembro são igualmente importantes. Temos a sensação de que nos estão a esconder qualquer coisa, quando a mediatização sobre os ataques foca exclusivamente os escombros da destruição das Torres.MJS - E agora, como é que avalia o pós-11 de Setembro?MLP - Da minha rede de amigos norte-americanos muitos são os que, com o choque brutal do que aconteceu, se questionam a fundo sobre as causas, concluindo alguns que, nos últimos cinquenta anos, o comportamento dos Estados Unidos nalgumas zonas do mundo criou bolsas de ódio tremendas, que puderam conduzir ao acto bárbaro de 11 de Setembro. É preciso, de facto, mudar o estado e o curso das coisas, sem cair no simplismo ou mesmo no erro de avaliação moral de encontrar equivalências entre os quase sete mil mortos dos aviões, das Torres e do Pentágono e os milhares de vítimas dos ataques ao Iraque e a outras regiões. Na perspectiva da "resposta ao atentado" o pós-11 de Setembro não é fácil de imaginar. Mas na perspectiva das causas já é possível, é urgentíssimo. A globalização está aí emanifesta-se claramente (em particular nestas últimas semanas!) em todas as suas vertentes. É indispensável que seja regulada nos seus vários aspectos. Tem que se aproveitar este momento para começar a fazê-lo. Felipe González disse recentemente que para além de vivermos na globalização financeira, económica, da informação e da comunicação, estamos agora a viver na globalização do terror. Para tudo isto é preciso encontrar e revitalizar mecanismos que possam regular cada uma destas áreas. É preciso, porventura, inventar outros mecanismos, mais eficazes, que regulem os grandes domínios da vida das sociedades, dos Estados, das empresas. Há trinta ou quarenta anos as dificuldades criadas pelo industrialismo eram já sentidas tão grandes nos países do Ocidente, como nos países de Leste. Operou-se, com a queda do império comunista, uma mudança geo-política de que ainda não conhecemos bem os contornos, não falo das fronteiras do mapa geográfico, mas do nosso mapa mental e das alianças possíveis que dele decorrerão. É tempo de se avançar para uma outra política, uma política alimentada por um realismo muito grande. Se os Estados Unidos têm Israel como primeiro beneficiário da sua ajuda ao desenvolvimento, e Israel é um país rico, isto não pode continuar.Contribui, em muito, para o clima de guerra no Médio Oriente e terminá-la é um imperativo da paz na região. À volta do Afeganistão há como que um círculo de problemas que têm que ser resolvidos um a um. Levantar o embargo ao Iraque é o círculo seguinte de problemas. E assim por diante... A meu ver, o prémio Nobel atribuído este ano às Nações Unidas e a Kofi Annan tem um significado muito claro, o de ser um estímulo para dizer: "Chegou a vossa hora de realizar o trabalho que vos cabe". É preciso acabar com a paralisia em que têm estado mergulhados. As Nações Unidas dependem dos Estados e dependeram muito, demasiado, depois da queda do Muro, do controle americano. Essa dependência unilateral tem de ter cobro.MJS - A questão religiosa, que também atravessa as análises e a reflexão sobre a actualidade, é para si um vector importante para a compreensão do que se passou e está a passar?MLP - É verdade que todos falam na necessidade de ir mais fundo no conhecimento das religiões e na revitalização de um diálogo ecuménico. Há aspectos históricos que não se podem esquecer. Desde a queda do Império Otomano que os muçulmanos ficaram de cabeça baixa. Esta situação não foi nem é indiferente a toda a questão da ex-Jugoslávia, mas quase ninguém a examinou sob este ângulo. Acho que há no povo muçulmano esse sentimento, talvez subliminar, mas que está neles e é fortalecido por aqueles que são fanáticos e por isso mesmo, como de resto acontece noutras religiões, se tornam politicamente radicais. Em alguns países de tradição muçulmana caminhou-se noutra direcção. Com Ataturk, na Turquia, houve uma tendência para a consolidação de Estados não teocráticos. O Iraque foi um desses exemplos. Fosse embora um Estado totalitário, quando visitei o Iraque fiquei surpreendida com a multiplicidade de organizações que existiam a funcionar em pleno, com a liberdade de culto que aí encontrei, etc.. Com a guerra Irão-Iraque começou a inversão dessa tendência. Os Estados Unidos foram apoiando o Iraque, as coisas começaram gradualmente a mudar e com a violência crescente da Guerra do Golfo a reviravolta deu-se de uma forma extrema e tudo se transformou na direcção que hoje conhecemos. E a sociedade iraquiana regrediu para sinais exteriores de fundamentalismo religioso como resposta à acção do Ocidente. Isto é paradoxal! As religiões podem ser sempre aproveitadas pelos regimes ditatoriais, sabemo-lo. O povo iraquiano (e convém não esquecer que morreram mais de duzentas mil pessoas nos ataques e depois, com o embargo, cifra-se em mais de quinhentos mil o número de crianças mortas) reagiu aos ataques refugiando-se naquilo que tem de mais arcaico, nas suas tradições e nos seus costumes, o que foi conveniente para o Governo. O que é importante recordar é que há também aspectos de modernidade e de invenção no pensamento islâmico actual que nem nós, ocidentais, conhecemos, nem se calhar a maioria dos povos dominantemente muçulmanos. Mas, sublinhar a importância da religião e não falar no móbil de toda esta tragédia civilizacional que é o petróleo e a droga, é escamotear o entendimento do que verdadeiramente tem estado em jogo. A guerra pelo acesso e controle de uma fonte de energia tão indispensável como o petróleo é capaz de ser mais importante que a guerra de religiões de que agora tanto se fala.MJS - Entre muitas outras coisas, os atentados de 11 de Setembro também desencadearam uma generalizada atenção para o Islamismo, domínio que ignorávamos e que parece agora interessar toda a gente. Mas será que o Ocidente conhece a fundo uma das matrizes da sua cultura, o Cristianismo?MLP - Temos andado distraídos do estudo e do conhecimento das raízes, é verdade. A História do Cristianismo, se conhecida a fundo, ajudaria a entender de outra maneira muito do que se está a passar. Poucos se lembram do Cisma que separou a Igreja do Oriente, com a criação da Igreja Ortodoxa, da revolta de Lutero, às portas da Idade Moderna, da resposta da Contra-Reforma e de todo um cortejo de ondas sucessivas que foram transformando a Igreja Católica, fortalecendo a ideia da separação de poderes entre a Igreja e o Estado e culminando, em certo sentido, com o Concílio do Vaticano II nos anos 60. O Islão não teve estruturalmente um conjunto equivalente de experiências. Enquanto o Cristianismo tem um poder central o Islão nunca o teve, foi sempre constituído por unidades diversificadas, o que não provocou a reflexão nem produziu as transformações que o cristianismo viveu ao longo dos tempos. Essa reflexão está actualmente a acontecer e é um desafio tão importante para um muçulmano como para um cristão, ou para um judeu. O verdadeiro encontro entre as religiões só se passa na medida em que cada crente aprofunda a sua própria religião e se apropria, mastiga, como dizia o profeta Ezequiel e mais tarde Teresa de Ávila, aquilo que é essencial na sua religião.O diálogo ecuménico não é equivalente a um conhecimento de todas as religiões, que tantas vezes conduz a um relativismo sincrético. Não estão mais aptos a dialogar com outros os que conhecem muito bem as crenças alheias - é bom que as conheçam mas para o diálogo há mais, muito mais do que o saber. O diálogo ecuménico é sobretudo um encontro de gente de fé, consciente do que é essencial na sua própria fé e, a partir desse lugar único, aberta ao diálogo com os outros. Não são, em primeiro lugar, teorias que se confrontam, mas práticas exigentes que tentam aproximar-se.MJS - Estamos a chegar ao fim e gostava de lhe pedir que me dissesse porque é que se sabe cristã?MLP - Sou cristã por reconhecer na vida de Jesus Cristo um ideal humano tão total e absoluto que nele se revela o próprio Deus. Sou cristã por encontrar no dom de Jesus Cristo um sinal de amor tão grande que tudo se transfigura, se dignifica e se salva à sua passagem. E por acreditar queJesus Cristo foi tão longe nesse dom que venceu a morte e permanece vivo através do tempo. E porque com a sua vida e a verdade dessa vida hoje ele me é caminho para Deus. Esse Deus que amou tanto o mundo que tomou a nossa própria condição humana e permitiu assim que, do fundo do sofrimento ou da alegria, da situação mais vulnerável ou do momento mais forte, a Ele nos possamos dirigir como o único totalmente nós e totalmente Outro.MJS - Peço-lhe uma palavra de eleição.MLP- Dou-lhe duas - Responsabilidade e Entusiasmo.

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