O Renascimento em perspectiva

Uma semana depois dos atentados no World Trade Center, era mais fácil encontrar turistas americanos em Roma a tirarem fotos ao lado de cartazes de organizações políticas a anunciarem "solidariedade pelo povo americano" do que japoneses a filmarem os jardins do al Quirinale ou a Scuderie Papali al Quirinale, onde tinha acabado de abrir a exposição "Renascimento. Obras primas de museus italianos. Tóquio-Roma 2001". Depois de estrear na capital nipónica, no âmbito de uma série de eventos dedicados à cultura italiana no Japão, era com alguma comoção e uma estranha mistura de sentimentos que o público romano podia ver, pela primeira vez, mais de duas centenas de obras reunidas e restauradas (com o apoio financeiro do grupo editorial japonês Nikkei). Afinal, os valores do humanismo e da racionalidade que tinham sobrevivido 550 anos e que ali se expressavam, num esplendor de imagens, pareciam subitamente demasiado frágeis na iminência de uma guerra com um inimigo ainda sem rosto.Mas o que este regresso ao Renascimento vem demonstrar, através de um criterioso processo de selecção e disposição das peças, é a sua espantosa capacidade de transfiguração. Oferecendo, uma vez mais, outra perspectiva da sua realidade. Que recusa ser espartilhada à luz da história. E que antes prefere regressar ao debate, mesmo que movediço, do exercício crítico.Ao entrar na primeira sala, o visitante que inicia o percurso pela Scuderia Papali depara-se logo, à sua esquerda, com um disco de madeira. É uma têmpera de Scheggia, onde figura "Il gioco del civettino", uma brincadeira de rapazes cujos gestos e códigos se desenvolvem na rua de uma cidade vista em perspectiva. Ao fundo, bem ao centro, a porta da cidade abre-se a uma paisagem campestre.Estamos portanto em pleno Renascimento, ou pelo menos no dealbar dessa ocasião predestinada em que "o homem [como sugeriu o historiador do séc. XIX Hippolite Taine] descobre pela primeira vez a poesia das coisas reais". Se ignorássemos o "Miracolo di San Nicola di bari" de Lorenzo Monaco, a "Madonna col Bambino" de Masaccio, o "San Giuliano" de Masolino, o "Sposalizio della vergine" de Beato Angelico, e apenas nos concentrássemos nos frescos de "Pippo Spano" e de "La Sibilla cumana" de Andrea del Castagno, nos bustos de crianças de Rosselino e, principalmente, no painel panorâmico de mais uma cena urbana de Scheggia, até poderíamos dizer, com o escritor brasileiro Nélson Rodrigues, que "na Renascença o sobrenatural ficou reduzido ao salário mínimo". Mas eis que entretanto já foi dada uma volta completa, no sentido oposto ao dos ponteiros do relógio (ainda só vamos na primeira sala!) e encontramos o mesmo disco de madeira. Não, já não é o jogo do "civettino", mas antes duas crianças nuas a lutarem, puxando os cabelos e agarrando na genitália uma da outra. Apesar da infantilidade da cena, os dois escudos que os ladeiam com elementos de heráldica simbolizam bem a sua natureza guerreira. A própria "utilidade" do disco tem dois lados: estas pinturas eram, na realidade, utensílios de parto; só depois das parteiras se servirem ritualmente deles é que se tornavam objectos de decoração, celebrando ao mesmo tempo a data de nascimento da criança. Esta dualidade (complementar) do disco de madeira tem ainda um dado recente: é que a pintura das crianças nuas a lutarem foi descoberta há dois anos e julga-se ser do séc. XVIII. Quanto ao jogo do "civettino", é de 1450 e só foi atribuído a Scheggia já no século passado.O que estas informações e o resto do percurso da exposição sugerem é que a "grande arte" do Renascimento, hoje reconhecida como o período culminante da civilização ocidental, existe num equilíbrio entre a funcionalidade e a simbologia das peças. Não só através das artes decorativas, que preenchiam os modos e os hábitos de vida das grandes famílias aristocráticas e da alta burguesia, mas da própria tradição retratista e de pintura narrativa, testemunho da existência de personagens e acontecimentos que assim procuravam superar o (seu) tempo e oferecer-se, misteriosamente, à interpretação e exercício da história. De resto, é o próprio comissário da exposição, Antonio Paolucci, a lembrar que o termo "Rinascimento", assim como "bella maniera" (que dará origem ao Maneirismo), foram criados por Giorgio Vasari no séc. XVI para expressar dois juízos de valor: sobre o período de renovação artística que se vivia na Itália desde o séc. XV; e para celebrar a época dourada em que surgiram as obras de Miguel Ângelo, Leonardo e Rafael. Estas duas expressões críticas transformaram-se depois em categorias históricas. O que, de certa forma, boicotou uma reflexão mais livre (e misteriosa) da arte desse período, na relação com as condicionantes políticas e sociais em que surgiram. Afinal, esta exposição, que começa e acaba com os artistas de Florença, reflecte um progresso e uma libertação formal que a história política desmente: "a invenção do Renascimento" acontece num cenário de felicidade e de paz onde imperam os Medici, banqueiros e mecenas; o Maneirismo dá-se num cenário de guerra e de invasões onde a família Medici é já uma monarquia e os seus artistas encontram-se na corte.

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