As invasões árabes e a carne de porco à alentejana

Não é por capricho culinário ou mesmo religioso que as velhas civilizações mediterrânicas nunca incluíram na sua ementa a carne de porco. Como é sabido, em climas secos e quentes, este animal sobrevive com dificuldade e sempre enfermiço. Todas as grandes religiões que ao longo dos séculos foram preceituando as regras de conduta destas sociedades - o judaísmo, o cristianismo primitivo e o islamismo - ritualizaram este defeso higieno-cultural, transformando o saboroso presunto em fonte de pecaminosos prazeres da gula. Os interditos religiosos eram porém mitigados ou mesmo abolidos à medida que os ares esfriavam nas encostas montanhosas da Estrela e de Gredos, ou se condensavam nas florestas húmidas do Sudão ou nos pântanos tropicais do Níger. É curioso notar como as esculturas claramente taurinas da cultura ibérica, à medida que nos afastamos da área mediterrânica, se transfiguram na conhecida representação do berrão ou verrasco difundido e semi-sacralizado desde épocas pré-romanas por todo o noroeste peninsular. Estas são as terras já atravessadas pelas brumas do Atlântico de onde são próprios os saberes da salgadeira e do fumeiro.Em tempos do Islão medieval, e mesmo actualmente entre os camponeses do Magrebe, o javali, embora da mesma família suína, melhor adaptado aos matos e carrascais da serra Morena, do Atlas e do Rife, sempre foi objecto natural das gastronomias regionais na sua qualidade de caça grossa. Em todos os sítios arqueológicos de época islâmica, é notória a presença, embora mínima, de restos alimentares deste porco silvestre. Uma leitura apressada acerca das comidas tradicionais do Alentejo e do Algarve em que o porco desempenha hoje um evidente papel de destaque pode levar-nos a concluir que a "Reconquista" teria expulso ou exterminado toda a população muçulmana, substituindo-a por colonos vindos do Norte. E de facto assim era afirmado até há pouco tempo nos nossos manuais: os mouros vencidos teriam regressado à terra deles, ao Norte de África.Ora hoje sabemos que os acontecimentos não decorreram dessa forma. Sabemos que o processo de conquista das terras do Sul, além das campanhas militares e da violência no saque de algumas cidades, significou sobretudo a feudalização de uma sociedade tributária, constituída por células territoriais mais ou menos dependentes de núcleos urbanos. As populações autóctones, maioritariamente muçulmanas, de artesãos e principalmente de camponeses, não partiram porque os novos senhores necessitavam de mão-de-obra para manter os seus rendimentos. Muitos, a esmagadora maioria, converteram-se rapidamente à nova religião cristã dominante, outros, de origem citadina, ficaram adstritos a mourarias onde continuaram as suas actividades artesanais e de comércio e alguns, muito poucos, de famílias aristocráticas ou ricos comerciantes, pagaram a sua viagem para outras paragens. Por várias e sólidas razões históricas e arqueológicas, por sobrevivências dialectais e toponímicas, por memórias e saberes que apenas uma presença continuada podem explicar, sabemos hoje que a estrutura populacional ficou praticamente intacta.Foi precisamente uma abordagem etno-arqueológica mais atenta a comprovar que nestas regiões mediterrânicas a mais antiga e profunda ritualização alimentar nada tinha a ver com a carne de porco à alentejana. Os gestos e saberes tradicionais passaram e passam sempre pelo consumo da carne de carneiro, seja sob a forma de ensopado em dias de festa, seja sobretudo na significativa comunhão masculina à volta de uma cabeça assada em que as formas de partilha denunciam a antiguidade. O consumo do porco surge tardiamente nestas regiões. A partir do século XVI a Inquisição reconhecia como prova irrefutável da falsa conversão de mouro ou judeu o facto de este não comer carne de porco. Não é portanto de admirar que a partir desta altura e para escapar à denúncia não só toda a gente passa a assumir esta dieta como tradição familiar, como passa a fazê-lo da forma mais visível. A matança do porco, rodeada de grande aparato cénico, é feita na rua e, para que não reste qualquer dúvida, generaliza-se a oferta de alguns nacos de carne fresca aos vizinhos.Por estes factos já constatados e por muitos outros que se relacionam com técnicas construtivas, com formas musicais, com sistemas e hábitos sociais, com formas de vida e mesmo com afinidades genéticas, podemos desde já fazer uma primeira constatação: aqueles guerreiros, aqueles exércitos de dezenas de milhares de homens que terão atravessado o Estreito de Gibraltar em 711, que esmagaram as tropas do último rei visigodo e rapidamente se apoderaram de toda a Península Ibérica, não chegaram a ser expulsos, nem foram atirados ao mar do Algarve pelas espadas vingadoras do Mestre de Santiago, D. Paio Peres Correia. Os árabes afinal continuam entre nós.Resta-nos saber quem são ou quem eram estes invasores, onde se acantonaram, onde se escondem, quem sabe se até aos dias de hoje.Uma certeza é hoje incontornável. Os dados arqueológicos nada assinalam em inícios do século oitavo que possa ser relacionado com grandes invasões de tropas estrangeiras. Muito ao contrário, é uma época em que, nestas terras do ocidente ibérico, não há qualquer ruptura civilizacional, qualquer novidade arquitectónica ou objectual que denuncie a chegada de tropas invasoras.Nas grandes cidades do Guadalquivir como Córdova ou Sevilha, em alguns outros centros urbanos da costa levantina, o século oitavo e nono marcam uma evidente orientalização de modelos e motivos, veiculados por uma abertura aos grandes mercados do Mediterrâneo oriental e por uma comprovada fixação de activas comunidades de mercadores e comerciantes, esses sim, os introdutores da arabização linguística e islamização religiosa. Aí se inscreve a primeira organização estatal dos Omíadas cordoveses.Da parte do Ocidente, para cá da serra Morena, no Gharb-al-Ândalus, as cidades portuárias, onde Lisboa já se destacara, eram geridas, entre outras, por activas e poderosas famílias judaicas. São estas comunidades, perseguidas pelos senhores pré-feudais de Toledo, as primeiras a adoptar a língua árabe, já então dominante nas transacções comerciais, e que, por alturas do primeiro milénio, na sua maioria já se tinham convertido ao islamismo. Além destes novos muçulmanos que durante os reinos Taifa nos séculos X e XI detêm o poder em algumas cidades do Gharb como Faro, Silves, Mértola, Beja, Évora e certamente Lisboa, conhecemos hoje a existência de outras comunidades urbanas organizadas em agrupamentos cristãos de culto monofisita, mais ou menos solidários com o patriarcado de Alexandria e que são, no Oriente, a primeira vaga de conversos à nova religião muçulmana.Isto passa-se nas cidades, porque no mundo rural, sempre mais resistente a inovações, não temos dúvidas de que a língua romance era dominante e que as formas religiosas seriam muito próximas de um sincretismo cristão moçárabe teimosamente arreigado a uma sazonalidade agrícola.Desta forma não será descabido afirmar que os milhares de árabes e berberes que a historiografia tradicional fez atravessar o estreito de Gibraltar para se fixar nas nossa terras, afinal, já cá estavam! Fazem parte de nós próprios.Não queremos negar a deslocação de corpos militares, a circulação de exércitos de mercenários tradicionalmente contratados pelas cidades mediterrânicas entre as aguerridas tribos berberes ou eslavas. Porém, o que não podemos aceitar é que tenham sido estes bandos armados, com a sua cavalaria rápida e armas ligeiras, de estranhas línguas bárbaras, estes profissionais da guerra, a introduzirem na Península Ibérica a civilização islâmica e muito menos a religião muçulmana.A passagem do mundo antigo para o Islão, como já o tinha sido na transição para o cristianismo, não é o resultado de conquistas militares. A síntese islâmica é um longo e lento processo civilizacional gerado no interior do Mediterrâneo, no seio das múltiplas heresias cristãs e judaicas que proliferavam nos circuitos urbanos e mercantis de todos os portos.Podemos finalmente tirar algumas conclusões.A primeira e, certamente, a não menos importante é que as civilizações nunca foram construídas pela força das armas. A veiculação das ideias, das técnicas é sempre o resultado de uma troca, de um acto de consenso. O militar, o soldado olha o outro, o desconhecido, o diferente, como inimigo a abater. O mercador, o comerciante olha-o, naturalmente, como potencial cliente. Uma segunda constatação refere-se aos fortíssimos fenómenos de continuidade no meio rural, onde é muito forte a permanência de hábitos culturais, ao contrário do ambiente portuário e urbano onde a veiculação de novas ideias desenvolveu um inevitável cosmopolitismo mediterrânico, nessa época perfeitamente dominado pelos circuitos urbanos do Oriente, maioritariamente muçulmanos.Podemos concluir finalmente que a esmagadora maioria das populações residentes no território conquistado pelas hostes de Afonso Henriques, Geraldo sem Pavor ou Paio Peres Correia, falavam árabe e romance, em proporções equivalentes, tinham sido ou ainda eram cristãs moçárabes, mais ou menos convertidas ao Islão, já tinham sido paleocristãs e seriam em breve clientes de Roma, na nova ordem imposta primeiro pelos vencedores e depois pela Inquisição.Actualmente, neste contexto de histeria anti-islâmica, no âmbito de uma nova cruzada em preparação, não será nada fácil apontar e denunciar os genes dos comedores de borrego, as marcas e os sinais de quem teve os seus antepassados entre os seguidores de Maomé. Em contrapartida não seria má ideia, em vez de bombas, lançar novos incentivos ao consumo de migas e de carne de porco à alentejana, o que, porque não confessá-lo, é uma prova de bom gosto nesta criativa misturada lusa dos mais variados sabores. Será mais contestável e certamente pouco eficaz alguma campanha sub-reptícia contra os apreciadores do ensopado de borrego, contaminados por outros gostos e odores e, potencialmente, quem sabe, mais atreitos a simpatias com as perigosas gentes do Sul.

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