José Régio, cem anos depois

Celebrar "dignamente" o centenário do nascimento de José Régio - foi com a confissão do propósito nuclear do colóquio internacional sobre o escritor de Vila do Conde que Arnaldo Saraiva, professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e comissário da iniciativa, deu ontem início, no auditório da Biblioteca Municipal de Almeida Garrett, no Porto, ao primeiro dos três dias de trabalhos de inspiração regiana. Na ausência do ministro da Cultura - Augusto Santos Silva teve de ir a tribunal prestar declarações sobre o Teatro Nacional S. Carlos -, a sessão inaugural do colóquio serviu sobretudo, como bem apontou o orador Daniel Henri-Pageaux, da Sorbonne Nouvelle, como "hors-d'oeuvres" para um programa cuja ementa inclui visitas a Portalegre, Coimbra e Vila de Conde, sessões de cinema, um espectáculo de teatro e diversas escalas na vida e na obra do fundador da revista "Presença". Lembrando as flutuações do olhar que público e crítica foram lançando sobre o autor do "Cântico Negro", Arnaldo Saraiva lançou algumas pistas para reflexão sobre o valor actual da obra de Régio e sobre o lugar que o futuro lhe reserva. A remissão do "verdadeiro regicídio" das últimas décadas, em que o escritor foi "votado ao ostracismo" e retirado dos "manuais escolares onde cada vez mais entram escritores de quinta e jornalistas de sexta", notou, terá de passar pela entrega a José Régio do "lugar que lhe é devido, e que não pode ser subalterno, na literatura portuguesa do século XX". O tom autobiográfico de Arnaldo Saraiva, que lembrou alguns episódios da sua relação com José Régio - do primeiro encontro, em casa de Manuel Poppe, ao abraço reconciliador na véspera do baptizado do filho de Ruy Belo -, manteve-se com a intervenção absolutamente sem guião de Agustina Bessa-Luís. Numa espécie de viagem pela memória, a escritora foi ilustrando alguns traços do carácter de Régio, com o qual, explicou, manteve "um convívio animado de pequenas birras e grande admiração". Os verões em Vila do Conde, em que o escritor cavaqueava no seu círculo de amigos - "um cenáculo de apóstolos com o seu mestre", comparou Agustina, à qual o Régio de então reservava o título de "menino Jesus entre os doutores" -, foram apenas o ponto de partida para a retrospectiva. "Aprendi muito com ele - aprendi sobretudo a bondade. Havia um apostolado em volta do Régio que ele conseguia justamente porque era um homem bom. Eu não vinha de famílias exactamente boas; vinha de famílias perspicazes, agudas, críticas. E, por isso, a inocência dele parecia-me atroz. Mas o Régio ignorava olimpicamente o lado obscuro da natureza humana, que não lhe interessava nada, no fim de contas", recordou Agustina, entre evocações avulsas. Pessoalíssimas: "Eu não sabia que era amiga do Régio. Até que soube que morrera e o fui ver a casa: foi então que tive a revelação do amor que sentia por ele".Também ausente, em Nova Iorque, Manoel de Oliveira fez questão de enviar um texto, lido pelo representante da Medeia Filmes. Reflectindo sobre "o novo e velho" na arte e na ética, o cineasta - autor dos dois filmes de inspiração regiana, "O Meu Caso" e "Benilde ou a Virgem Mãe", que ontem foram exibidos no âmbito do colóquio - considerou José Régio "um caso único na literatura universal": "A essência do novo é o sexo, a violência, a vingança, o poder, o poder, o poder. A essência do novo é fútil, é quase nada. Se ainda fosse nada... Mas não: é só quase (...). Régio não é novo, moderno, ou antigo, clássico, naquilo que na sua obra é essência, porque sempre quis ser intemporal. Nele o princípio toca o fim. É nada e é tudo. Não é fácil classificá-lo, porque não tem cacifo próprio. Régio é de ontem é de hoje, é de sempre".A palavra passou então para Eugénio Lisboa, que abordou o paradoxo entre o "óbvio triunfo editorial" de Régio e os preconceitos e as desleituras de que foi alvo. "Régio foi lido com paixão, deixando não poucas marcas de fogo perene. E foi lido até ao fim", vincou, lembrando também a faceta crítica de "um dos escritores mais inteligentes e mais sensíveis do nosso tempo". Que "vale a pena reler violando os 'clichés' que lhe têm atravancado a riqueza genuína". Luciana Stegagno-Picchio, especialista em estudos portugueses e brasileiros da Universidade de Roma, concordou, acentuando sobretudo a exportabilidade do teatro regiano, o paralelo com Mário de Sá-Carneiro e o carácter completo do escritor: "José Régio foi um intelectual português tão íntegro. Ele foi tudo". Para o final do primeiro painel do colóquio ficou a intervenção de Daniel Henri-Pageaux - e a abertura da exposição de manuscritos de Régio na Biblioteca Pública Municipal do Porto -, que analisou a crítica presencista, feita sempre num registo "entre a polémica e a admiração". "A crítica de Régio abusa das oposições de nomes porque repousa em preferências pessoais extremas. E assim se constrói, passo a passo, uma literatura canónica segundo a 'Presença'", concluiu.

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