Vazio no céu

Com o ataque ao World Trade Center, a inexpugnabilidade de certas realizações arquitectónicas foi posta em causa. Porque os edifícios também se abatem. Principalmente se estiverem no foco do mundo. Eis a nova dimensão do terror.

Fogo, destruição e angústia caracterizaram os momentos finais da vida de um dos símbolos da cidade de Nova Iorque, o World Trade Center, complexo empresarial composto por sete edifícios que albergava dois dos maiores arranha-céus alguma vez construídos. Os outros cinco não eram tão pequenos assim. Variavam entre os nove e os quarenta e sete pisos. Tratava-se, portanto, de um conjunto de gigantes que ocupava uma área de 64 750 metros quadrados. A morte do World Trade Center acarretou a perda inestimável de milhares de vidas humanas, numa catástrofe que parece decalcada das grandes tragédias bíblicas, uma espécie de encenação contemporânea do destino da torre de Babel. Numa época propícia a leituras impregnadas de multiplicidade, o carácter heróico e simbólico de um marco arquitectónico sairá necessariamente valorizado pela opinião pública. E o que impressionou o mundo é que ele não sucumbiu a uma calamidade natural, mas sim às mãos do próprio homem.A sua destruição por um ataque terrorista carrega hoje a metáfora de uma luta antiga: a da civilização contra a barbárie. Porque, em cerca de trinta anos de existência, o World Trade Center tornara-se um ícone da prosperidade da civilização ocidental, servindo de padrão medidor do sucesso. Em absurdo, era como se para um vulgar "yuppie" calcorrear cada um dos cento e des andares de uma das "torres gémeas" (as famosas "twin towers") representasse um passo na ascensão à glória. Um percurso auspicioso, dos simples serviços de engraxador localizados no subsolo, por exemplo, aos mais prestigiados escritórios de advogados, correctores da bolsa ou firmas do sector financeiro situados ao longo daquela estrutura vertical.Com o World Trade Center, a tipologia do arranha-céus entrou definitivamente para o imaginário internacional, pelo menos no eixo América-Europa-Ásia, como um arquétipo da arquitectura empresarial. E muitas cidades rivalizaram com Nova Iorque construindo os seus próprios "world trade centers". Réplicas menores de um modelo que se vulgarizou a partir do momento em que as "twin towers" dominaram a silhueta de Manhattan, em 1973. Antes, a disputa pela mais alta torre nova-iorquina fez parte da história da cidade, numa conquista entre o desempenho tecnológico, a vaidade e o orgulho, tendo por fronteira o céu. A definição pertence ao holandês Rem Koolhaas e a sua dimensão utópica foi exemplarmente exposta em "Delirious New York", livro-manifesto datado de 1978.Por vezes a soberania dos céus durava pouco mais do que um punhado de meses. Noutras, prolongava-se por anos. Salvaguardando-se as devidas distâncias históricas, tecnológicas e urbanísticas, pode-se afirmar que o fenómeno não era inovador. Outras civilizações de carácter predominantemente urbano, como as mercantis que vitalizaram a Península Itálica no final da idade medieva, manifestaram rivalidades privadas com actos similares. Nelas, a torre medieval perdeu o seu papel defensivo para expressar ascensão e poder. O arranha-céus, contudo, foi simultaneamente a fórmula e o programa que o século XX encontrou para espelhar a hegemonia social e económica que o capitalismo fundou. Um hino à iniciativa privada e empreendedora que criou a América. Muitos recordarão a cena final do filme "Vontade Indómita" (realizado por King Vidor), na qual o arquitecto contempla a cidade do alto da torre que acaba de construir. Uma conquista solitária, todavia contundente.Mas os mais belos arranha-céus da história da arquitectura do século XX talvez jamais tenham sido edificados. Nasceram da criatividade delirante do arquitecto italiano e futurista Antonio Sant'Elia, morto durante a Primeira Guerra Mundial, da qual, aliás, fora apologista. Foram expostos na exposição "Nuove Tendenze", realizada em Milão em 1914, e influenciaram definitivamente todos os projectistas que se entregaram ao seu desenho, transformando-se numa rica fonte de inspiração formal. No texto que acompanhou o evento, Sant'Elia e Tommaso Marinetti (o ideólogo do movimento futurista, 1876-1944) escreveram: "As casas durarão menos que nós. Cada geração terá que construir a sua própria cidade." A visão que propunham era a da reconstrução constante de um mundo novo. Esse mundo confundia-se com a ideia de metrópole, de uma vida que teria por cenário a grande urbe, povoada de arranha-céus e de mega-estruturas. Nova Iorque pode muito bem dever a sua configuração actual também a esta herança.Enquanto projecto, o World Trade Center teve o mérito de fixar o perfil da sua cidade num entendimento singular da escala urbana. Neste último aspecto residia o seu principal - e para alguns críticos, o único - valor arquitectónico. A implantação urbana, associada à altura de cerca de quatrocentos e doze metros e ao purismo prismático das suas principais torres, elevaram-no à categoria de monumento. O seu fim mártir aproxima-o rapidamente da lenda. O facto de parte dos nova-iorquinos, pela voz do seu presidente de câmara Rudolph Giuliani, o pretenderem reconstruir, reforça esta ideia. Estima-se que tal reconstrução possa custar entre quinze a vinte e cinco mil milhões de dólares. Mas a decisão não será pacífica. Num artigo do jornal "Chicago Tribune", publicado seis dias após a tragédia, o crítico de arquitectura Blair Kamin explica que "a ausência das torres fala mais alto do que alguma vez a sua presença o fez". Kamin teve a coragem de as apelidar de "banais e aborrecidas", o que era verdade. Alertou ainda para a incongruência das duas atitudes que hoje dividem os norte-americanos: reedificá-las segundo o seu desenho original ou erguer um memorial às vítimas. "Seria mais acertado construir um novo complexo comercial, menos gigantesco do que foram as torres gémeas e mais de acordo com o perfil da baixa de Manhattan."A sua sugestão revisita a memória do arranha-céus na melhor tradição, o da década de 20. Isto não significa reproduzi-lo literalmente, mas, tal como afirmou: "Reinterpretá-lo criativamente enquanto forma, usando as mais recentes tecnologias e teorias que ensinam como tornar vivas as cidades." Entre as duas hipóteses levantadas, a da continuidade e a da ruptura, opta pela primeira retomando um dos temas mais caros à produção arquitectónica norte-americana com origem nas cidades de Nova Iorque e Chicago. No entanto, Kamin fá-lo com cautela, ou melhor, recusa qualquer radicalismo. A obsessão pelo "mais alto" como modo de criar um marco urbano emblemático não parece ser a única resposta num momento de reconstrução. Realizações destas exigem preços muito elevados. Os quatrocentos e vinte e três metros das Torres Petronas de Kuala Lumpur (Malásia, 1998), de Cesar Pelli, foram possíveis graças a uma estrutura que ocupa cerca de sessenta por cento da área útil de cada piso. Porque, como se sabe, os argumentos para a construção em altura (a partir de um determinado limite) nunca se esgotaram na funcionalidade imediata, nem na optimização do espaço. A prova de que a altura subsiste como um desafio é o projecto da Torre do Milénio destinado à cidade de Tóquio e concebido no escritório do inglês Foster. O resultado poderia ser (quase) comparado ao das duas Petronas empilhadas, actualmente as detentoras do recorde de altitude.O World Trade Center era também a mais famosa obra do arquitecto americano Minoru Yamasaki. Nascido em Seattle em 1912, Yamasaki teve uma carreira frutuosa em encomendas, ainda que nunca tenha sido tocado pela genialidade que distinguiu os mestres da arquitectura moderna. Em 1949, abriu o seu próprio escritório, activo ainda hoje, mesmo depois da sua morte, aos setenta e três anos. Por linhas "tortas", uma das suas obras contribuiu para escrever um dos capítulos da recente cultura arquitectónica ocidental. A 15 de Julho de 1972, todo um conjunto habitacional projectado pela sua equipa - "Pruitt-Igoe" (Estados Unidos) - foi demolido, entrando a data ironicamente para a história como o dia que assinalou o fim do Estilo Internacional. Alguns viram nesta morte o anúncio de uma nova era que não repetiria os erros do desenho urbano moderno anterior, caracterizado por traçados e edifícios que então consideravam contrários à escala humana, excessivamente presos à eficácia funcional e técnica. Analisados de maneira superficial, os trajectos vividos pelos projectos de Yamasaki parecem assim fadados para o encerramento de ciclos. Significará a destruição do World Trade Center o declínio do arranha-céus?Em Portugal esta tipologia foi diversas vezes proposta e nunca testada. Os arquitectos Manuel Graça Dias e Egas José Vieira tiveram a coragem de desenhar um segmento da cidade de Almada, na área dos antigos estaleiros da Lisnave, com uma proposta que privilegiava a construção em altura. Vista de Lisboa, seria uma autêntica "Manhattan", como foi apelidada. O projecto está em discussão, mas Graça Dias não acredita que, enquanto tipologia, o arranha-céus desapareça do imaginário ocidental: "O traumatismo causado provocará o aumento do nível de segurança exigido, que hoje é já maior do que aquele que existia há trinta anos, quando as torres do World Trade Center foram construídas." É importante não esquecer que a configuração da estrutura das duas torres, se não impediu a tragédia para muitos dos que se encontravam nos edifícios (as torres gémeas tinham capacidade máxima para albergar cinquenta mil pessoas), pelo menos não causou com a sua queda a destruição imediata dos quarteirões contíguos. A torres desabaram para "dentro", efeito provocado pela cedência da estrutura, face ao sobreaquecimento provocado pelo incêndio decorrente da explosão causada pelo combustível dos aviões, e pelo peso das sucessivas lajes em movimento descendente (cada laje pesava quarenta toneladas). Este movimento foi impulsionado pela queda de uma plataforma com seiscentas toneladas existente no topo de cada torre, dispositivo que ajudava na manutenção do seu equilíbrio vertical, não permitindo grandes oscilações. Depois do atentado à bomba sofrido em 1993, foram realizados testes para uma possível evacuação. Estes demonstraram que somente quarenta por cento das pessoas conseguiriam sair dos edifícios no espaço de uma hora, um tempo superior ao que a segunda torre atingida levou para cair. Para oito por cento dos ocupantes, três horas seria o mínimo de tempo dispendido numa hipotética fuga. Os números esclarecem quanto à dimensão do terror.O que está em causa, contudo, é um estilo de vida urbana, como tão bem sabe o arquitecto português Graça Dias: "A densidade cria uma cidade muito mais interessante do que aquela que a construção em extensão é capaz de proporcionar." Para Yamasaki, o World Trade Center acalentava outros significados, mais abrangentes: "Por causa da sua importância, o World Trade Center tornou-se uma representação viva da crença do homem na Humanidade, a sua necessidade por dignidade individual, a sua convicção na cooperação e, através desta, a sua habilidade em encontrar grandeza." Conheceriam os terroristas estas suas palavras?

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