Que música é esta?

Remexer nos últimos 40 anos da música jamaicana é, muitas vezes, descobrir o futuro. O dub continua a contaminar as mais diversas frentes da música moderna como a compilação "After The Dub" confirma. E a história ainda agora começou.

Remexer nos últimos 40 anos de história da música jamaicana é, muitas vezes, descobrir o futuro da música actual mais excitante e estimulante. Com uma pontaria quase certeira, foi naquela pequena ilha do Caribe que, desde a década de 60, se foram fundando instituições que hoje são as linhas-mestras daquilo que vulgarmente se chama música de dança. Desde a figura central do DJ, que surge na Jamaica de forma consolidada logo no início dos anos 60, passando pelos conceitos de sound-system, white-label e MC: todos eles são inventados ao longo da fértil e fervilhante caminhada da história da música jamaicana. Será, contudo, às técnicas de manipulação próprias do dub que deve ser atribuída uma importância decisiva e fundamental no desenvolvimento da música de dança tal como hoje a conhecemos. Por entre o culto religioso de Rastafari, o respeito aos poderes transcendentais da erva e a dedicação ao experimentalismo nos estúdios de gravação forjou-se, nos anos 70, uma das formas mais modernas de percepção da música. Afinal, o futuro foi ontem.Com uma alarmante frequência, é atribuída ao pós-modernismo a ideia pioneira de apresentar memórias de uma forma re-modelada, re-novada e re-feita. Nada mais errado se remontarmos à Jamaica do final dos anos 60. Numa indústria discográfica então nascente, o single transformou-se rapidamente no formato por excelência de toda a música produzida localmente. Um tema, frequentemente de ska (o primeiro género musical a surgir na Jamaica) ou reggae ocupava o lado A, ao passo que o lado B era ocupado com uma versão da mesma canção, desta vez transformada pela mão do produtor, que através da panóplia de efeitos que possuía na mesa de mistura aplicava um tratamento desrespeitador da forma original do tema em causa. A palavra dub pode ter vários significados, se bem que o mais próximo tenha origem no conceito de dobragem ("double", em inglês), aqui aplicado de forma a que a cada pedaço de música seja insuflada uma nova vida, alterando a ordem racional de um tema de maneira a que este desague num "oceano de sensações", como diria o musicólogo David Toop.O primeiro produtor a "descobrir" todo este manancial de hipóteses terá sido Osbourne Ruddock, mais conhecido por King Tubby. Foi ele que, por acidente, reparou que poderia conduzir um tema original a outro nível quando "cortava" acetatos para o "sound system" de Duke Reid. Ao perceber que, depois de aniquilar as partes vocais de uma canção, esta poderia ser tratada através de efeitos e técnicas várias de estúdio como reverberação, equalização extremista, ecos, sub-graves, rebaixamentos e por aí fora, King Tubby chegou a uma nova e completamente diversa forma de organização do tema em questão. Tinha nascido o dub, que rapidamente se massificou como uma nova forma de percepcionar uma realidade já conhecida (o tema original). Na Jamaica, foram frequentes os casos em que a versão dub se tornava mais popular que o original. Mais importante do que isso, King Tubby terá reorganizado também a hierarquia própria da autoria musical. Agora era ao produtor, o mestre manipulador de um instrumento chamado estúdio, que cabia o maior protagonismo e, verdadeiramente, a autoria do resultado final. Daqui até ao advento das remisturas, foi um pequeno passo... que demorou mais de 20 anos a ser dado pela indústria discográfica europeia e norte-americana.Se King Tubby é considerado o pioneiro do dub, o produtor mais inovador na utilização das suas técnicas foi Lee "Scratch" Perry. Durante os anos 70, a produção de Lee Perry tornou-se lendária, não só pela inovação e experimentalismo que colocava em cada faixa que produzia mas, inclusivamente, pela sua quantidade - até hoje não foi possível sequer fixar a sua discografia completa. Quando Perry e outros produtores como Augustus Pablo (também conhecido pelo uso ingénuo da harmónica), Niney ou Horace Andy, começaram a desenvolver as técnicas dub, o estúdio passa, definitivamente, a ser considerado um instrumento de primordial importância. Os instrumentos entram e saem de cena como personagens de uma peça dramática, apimentada por inúmeros efeitos sonoros obviamente imprevisíveis e insanos, sejam eles o cacarejar de galinhas, vozes fantasmagóricas, baterias destrambelhadas ou ecos que se reproduzem infinitamente. Uma nova dimensão tinha sido encontrada.Lee Perry começou por trabalhar para Coxsonne Dodd, no Studio One, e, mais tarde criou a sua própria banda, os Upsetters (composta por alguns dos mais famosos músicos de Kingston: Aston Barrett, Carlton Barrett, Alva Lewis, Glen Adans e Max Romeo). Os Upsetters viriam a ter um papel fundamental na carreira dos Wailers, de Bob Marley, tendo inclusivamente gravado alguns dos seus primeiros álbuns para a Island Records. Seria, no entanto, em 1972, que Lee Perry avançaria para a construção do seu próprio estúdio, baptizado de Black Ark, pois estariam ali guardados os dez mandamentos do reggae. O estúdio ficou terminado em 1974 e, nos cinco anos seguintes, Lee Perry transformou-se realmente no Moisés da música jamaicana.Foi nos estúdios Black Ark que se gravaram álbuns decisivos como "War in a Babylon" de Max Romeo, "Super Ape" dos Upsetters, "Police and Thieves" de Junior Murvin e "Heart of the Congos" dos Congos, bem como centenas de singles marcados pelas pioneiras e inovadoras técnicas de manipulação em estúdio de Lee Perry. Um contrato de distribuição com a Island colocou-o nas bocas do mundo, mas Perry, em mais um acto imprevisível, lançou fogo ao seu próprio estúdio em 1979. Apesar da loucura que lhe foi diagnosticada, Perry tinha massificado o dub e as suas técnicas para o mundo inteiro. Os Clash, arautos do movimento punk inglês, seriam dos primeiros a interessar-se pela sua arte, fazendo incluir várias versões dub dos seus temas no álbum "Sandinista". Em Inglaterra, destino preferencial da emigração jamaicana, o dub explodia ao romper dos anos 80. O britânico Adrian Sherwood foi certamente um dos principais impulsionadores do dub fora da Jamaica. Foi em Londres que estabeleceu uma teia de relações que denominou On U-Sound System, disposta a alargar os limites do dub. Projectos como os Tackhead (do qual faziam parte Doug Wimbish, , Keith LeBlanc e Skip McDonald, músicos que gravaram clássicos do hip-hop como "Rapper's delight", "The message" e "White lines"), African Headcharge e a produção de álbuns de Lee Perry ("Time Boom X De Devil Dead"), Prince Far I ou Gary Clail partiram do génio de Sherwood. O revivalismo ska do início dos anos 80 fez a ponte entre o dub e o movimento punk e pós-punk. Os Clash serão muito responsáveis por isso, mas também Jah Wobble, então baixista dos PiL, e, do outro lado do Atlântico, Bill Laswell têm a sua quota parte.Ao consagrar o produtor como figura central da produção musical, o dub funciona também como uma provocação ao actual quadro de direitos de autor. O artista ou intérprete é deslocado do seu papel central, pela utilização ou pilhagem sucessiva de elementos dispersos dos temas originais, levando a um reaproveitamento do original já proclamado por Marcel Duchamp. Uma característica que, aliás, se tornou comum a variadas formas de música popular, sejam elas o hip-hop, blues, punk, tecno ou fado.Não admira, por isso, que o dub, depois de instituído no mundo ocidental, tenha vindo a contaminar a produção musical dos mais variados géneros e sub-géneros musicais. Desde o "trip hop" de Tricky e Portishead, ao punk californiano dos Sublime; do estranho "ambient" de Aphex Twin à house da Guerilla Records; da pré-história do jungle ao rock sónico dos Dub Narcotic Sound System. O dub infectou a música do início deste milénio, particularmente as vertentes mais 'downtempo' da música de dança. Talvez porque a afinidade de objectivos é evidente. Afinal, trata-se apenas de um gosto especial pela evasão.

Sugerir correcção