Hélia Correia: "Escrevo completamente às cegas"

"Lillias Fraser" é o novo romance de Hélia Correia. A história de uma menina que vê a morte antes de ela acontecer. Da Escócia a Lisboa, passando pelo Convento de Mafra, num cru, cruel século XVIII.

O avô de Hélia Correia era o mais famoso tocador de gaita de foles da região de Mafra. E, na família, há a lenda de que o instrumento e o dom vêm de um ancestral escocês. O que explicaria também a aparência mais celta que moura de alguns filhos e netos. Assim, ao lado de Mafra (onde cresceu) e de Lisboa (onde nasceu e vive), a Escócia é uma espécie de lugar de origem para Hélia Correia. Da sua primeira incursão escocesa, há dois anos, recuperou parte para este seu novo romance, "Lillias Fraser". É com ele que nos sentamos no chão de um sótão azul, aos pés da Serra de Sintra. A gata Violeta ficou lá em baixo, a dormitar.À partida sabia que o livro faria este percurso: Escócia, Mafra, Lisboa?Não. Os lugares foram-se convocando uns aos outros. A mim só me pediam que não os recusasse. Nunca tenho um propósito quando escrevo, toda a minha escrita é completamente indeterminada, em termos de vontade, de decisões anteriores à escrita.O que é muito misterioso, porque "Lillias Fraser" é um livro perfeitamente estruturado.Resulta estruturado. É uma coisa que me dá muita felicidade quando acontece, a minha atitude é de espanto e de gratidão à literatura: é a coisa literária que se organiza em si. Por exemplo, os personagens que aparecem no livro e que depois funcionam, quando me apareceram, pensei que eram episódicos, um encontro momentâneo. E depois agarraram-se e começaram a fazer sentido uns com os outros. A Lillias era para ser um episodiozinho, um apontamento.A ideia nasce da sua visita à Escócia, em 1999?Não. Toda a visita à Escócia, às Terras Altas, ao oeste, às ilhas, foi muito importante, mas em termos pessoais. Despertou-me curiosidade ter estado no lugar da Batalha de Culloden [1746], fiz muita investigação histórica, calhou ter estado lá no aniversário da batalha... mas foi uma peregrinação minha, não houve literatura nenhuma.Essa viagem - parcialmente recuperada, depois, para o livro - confirmou a Escócia como um lugar seu?Absolutamente, mas também não precisava dessa verificação, eu sabia. Não tem nada a ver com o nacionalismo escocês, mas com uma terra, um clima, uma felicidade de respirar ali que eu não tenho aqui, nestes sítios onde me sinto desterrada e só a língua me prende. E a língua é tudo, também.O que é que a torna estrangeira, aqui?Sempre me senti alheia, a ponto de não ser nada nacionalista, de quase não ser patriota - só numa situação extrema de invasão imperialista. Desde sempre foi assim. Provavelmente isso também foi cultivado pelos meus pais. Na juventude, a minha mãe fez a sua aprendizagem doméstica com as amigas refugiadas da guerra na Ericeira, e trouxe para casa uma cultura diferente, cozinhados, maneiras de vestir... Por outro lado, o meu pai também tinha a cultura da diferença política, da verticalidade moral, da aristocracia intelectual de esquerda, com uma ideia da educação das crianças completamente diferente da dos meus vizinhos. Provavelmente houve sempre esse centro onde se elogiava a diferença, que no fundo também era um desterro.O livro atira-nos para longe e para trás. Além dessa experiência da diferença, o que é que a afasta deste tempo e deste lugar?Não gosto desta época, mas tenho tanto uma pulsão para trás como uma pulsão para a frente - vislumbrar uma época completamente nova, sair um pouco da infância da Humanidade. Vivo muito fascinada pelo que não é agora e aqui, ou a comida teletransportada ou o fogozinho de lenha [risos], ou para a frente ou para trás. O que é preciso ter é a continuidade espiritual, da criação, da arte, qualquer coisa que se vá modificando mas que sobreviva, dos deuses gregos às viagens interplanetárias. Ando com muita atenção às modificações genéticas, à clonagem, à globalização, o que sinto é que o mundo está com dores de crescimento, num momento muito delicado, porque esse crescimento pode ser mal feito e sair um corpo feio e mau, que não estará feliz consigo mesmo, ou, se for feito delicadamente, sair um adulto muito bonito.Este século XVIII do livro é disforme, sujo, cruel.Cruel e desesperado. Eu odeio o século XVIII.Quando a ideia do livro lhe aparece, é esse tempo, a Escócia, a visão da Lillias?É uma confusão, escrevo completamente às cegas, no escuro, não sei o que estou a fazer. No princípio, era outro livro, uma novelazinha, perfeitamente contemporânea. Está escrita, mas não sei se a vou publicar: a personagem principal tem uma espécie de perturbação, de doença que aparentemente lhe foi incutida pelo contacto com um sangramento num pano antigo. Sente-se febril, com momentos de pânico. Depois, há uma peregrinação ao sítio onde se supõe que isso tenha acontecido, para tentar repor o que de lá saiu, e separar aqueles dois universos. Mas nesse repor, há uma evocação do ser pelo qual o pano teria passado, e era uma menina. A Lillias.E então pegou-lhe, para este livro, e viu-a no século XVIII?Vi-a em Culloden. A fugir de lá, a sobreviver. Ainda não fazia ideia de como poderia aparecer em Portugal. Comecei a deitar-me com a menina, a jardinar com ela, e ela foi ganhando uma dimensão que resulta neste livro, grande, para mim, que tornou a novela completamente secundária. Não sei se foi só um gomo que existiu para dar saída à Lillias e que agora tem de morrer. Começou este livro para saber mais sobre a menina. E nessa altura só havia a Escócia...Escrevi frase a frase. Quando percebi que vinha para o século XVIII fui para a Biblioteca Nacional investigar, porque não sabia nada.E encontrou imensa coisa sobre o terramoto de Lisboa.Coisas demais. Fiquei apavorada. Então, li só dois livrinhos de divulgação geral, alguns relatos de viajantes da altura, e fiquei por aí. Quando comecei a escrever o que sabia é que ela viria para Lisboa - não sabia ainda como, as ligações dos escoceses a Portugal, aquele encadeado de histórias que a trazem -, e que estaria cá na altura do terramoto. Não sabia o que se seguiria, não sabia de Mafra. Mafra aparece-lhe já em plena fuga da Lillias.Ela foge... foge das complicações da descrição do que é viver o terramoto [risos], foge para norte, e o que é que há para norte? Mafra. Precisei de respirar fundo, de ganhar coragem. Se não fosse com ela, nunca iria a Mafra. Era muito assustador e ao mesmo tempo muito repulsivo. Eu cresci à sombra daquele convento, e ninguém gostava de Mafra. Ainda hoje há uma marca negativa de quem fez lá a preparação para a Guerra Colonial, mas mesmo em termos dos habitantes era uma terra muito sombria, dividida entre oposicionistas e situacionistas. Eu sentia-me muito vigiada, uma resposta minha num exame era espreitada por toda a gente, e isso foi durando, porque enquanto os meus amigos eram gente da classe superior de Mafra e vieram todos para Lisboa fazer o liceu, eu, como era de pais sem posses, fiquei. Tudo era muito observado, havia muito o peso de cada gesto, de cada momento, o padre, vestido com aquelas batinas compridas, estava à espera, quando eu dobrava à esquina, para me levar a baptizar...E o Convento, era o quê?Era muita coisa... A avó de uma amiga minha ainda tinha sida criada da rainha, a minha prima Maria Amélia chamava-se assim por causa da rainha, portanto era o sítio onde ainda algumas pessoas se lembravam dos reis. Depois havia a tropa, que era o terror, faziam a ronda à noite, e eu nunca sabia quando aquelas botorras iam parar à minha porta, para vir buscar o meu pai. E, antes de eu nascer, o meu pai e os amigos estiveram presos uma noite nas masmorras, com ratos, antes de os levarem para Peniche e Caxias... Ainda hoje se fala dos ratos do Convento, e de um capitão sem cabeça, um fantasma que lá andava. Depois havia a basílica, pela qual eu tinha uma atracção estética, os roxos, o cheiro a cera, o coro... Eu fugia para lá, ia atrás das procissões, a minha mãe descobria-me lá, a cantar, com a minha voz de criança... depois fui expulsa da cataquese...Mas andava na catequese?Eu achava que na catequese davam aqueles santinhos muito lindos, e então perguntei ao meu pai se podia ir. A catequese era no Convento, para lá da basílica, andando por uns corredores imensos. Claro que toda a gente ficou a saber que eu, a filha do meu pai, ia para a catequese, o que era um momento óptimo para exercitar aquele sadismo discriminatório. De modo que a primeira coisa que a catequista fez foi perguntar quem é que estava ali que não fosse baptizado. Eu disse que não era, e ela respondeu: "Então tens que te ir embora." Fiquei com essa memória da expulsão, de fazer aqueles salões imensos, escadas, corredores, com aquela sensação de expulsão.O Convento é muita coisa.. as corujas à noite, quando éramos mais crescidos e passávamos os serões lá sentados, uma mulher louca de túnica roxa que tinha ataques de beatice e chamava as crianças e que às vezes dormia lá...Portanto a Lillias vai a fugir, aparece-lhe Mafra, o Convento e, necessariamente, o embate com o "Memorial..." de José Saramago. Como leu, há vinte anos, esse livro, que fixa na literatura o lugar da sua infância?Com uma grande, grande felicidade. Foi quando encontrei verdadeiramente o Saramago. Embora se elogie sempre "O Ano da Morte de Ricardo Reis", para mim, o "Memorial..." é 'o' livro do Saramago. Nem sequer teve a ver com passar-se em Mafra, foi uma felicidade daquela escrita, daquela maneira de evocar a história, aquela liberdade de estilo, aquele encavalgamento das frases umas nas outras, especialmente para mim, que sou muito disciplinada nas obediências formais. Lembro-me de estar agarrada ao livro como a um gatinho, de andar com ele muito, muito feliz. É um daqueles momentos de literatura em que se faz o pleno, não o pleno de quando se lê poesia, mas por aquela maneira de tratar o real histórico.Não sentiu receio de enfrentar essa fortaleza literária?Não me assustou. A grande epopeia do Convento, que é a dele, estava escrita. Eu apanho o Convento num momento de abandono, de decadência, ainda muito novinho, mas já artificialmente envelhecido. Nem parei muito para pensar.É um bocadinho um tributo, sobretudo na aparição da Blimunda.É muito um tributo. Mas não tive medo de me adaptar ao espaço, porque não há epopeia nenhuma ali, quase não há adultos, é a minha experiência do Convento em pequenina, com todos os mitos dos ratos. E ao mesmo tempo é visitar o Convento que o Saramago construiu, porque se alguém havia de tratar aquele "calhau" - como lhe chamam as pessoas que o odeiam - esse alguém foi ele. Não é uma apropriação, não é uma versão. O livro e o Convento, hoje, não se podem separar. Agora, a partir do momento em que ele lá está, pode-se entrar.Depois regressamos a Lisboa, aos escombros, e surge a personagem do Jayme Mendões, que é a que abre o livro para a Europa, para as ideias da revolução, para o Voltaire.É o filho da senhora Cilícia, quando eu nem sabia que ela tinha um filho! As personagens aparecem-me assim. Se eu falo com inocência, com verdade, parece que estou a falar de visionarismo, daquelas coisas que ficam muito mal. Mas é assim, muito por cenas. O Jayme Mendões vinha completinho, vi logo o que ele ia ser. Um apontamento de beleza naquele século XVIII, em que os homens eram horríveis.Também é o único momento do livro em que se consegue agarrar um bocadinho a Lilias, que é uma personagem muito perturbante, completamente fechada e esquiva. O momento em que ela se fixa é esse, quando acredita em alguma coisa, quando se enamora. Ela aprende a esconder-se por auto-defesa. Por outro lado, uma pessoa que tem um determinado poder não se revela, basta-se a si mesma, não se abre às outras, não precisa dessa troca de intimidade. Não tinha pensado nisso, mas, de facto, o único momento em que ela perde esse poder é quando se apaixona pelo Jayme Mendões.Ela é tão esquiva que não se acredita que acabe aqui, neste livro.Ah... o livro está fechado a sete chaves... Mas um dia destes houve um pequeno milagre de uma das minhas fadas, não posso dizer mais nada... mas talvez... talvez eu possa lá voltar. Eu gostava, tenho muita pena de a ter deixado.Disse uma vez que não são as histórias que lhe interessam, mas as palavras, o texto. Também disse que deixou de escrever poesia quando encontrou Herberto Helder, que "é um encontro que pode matar". A poesia está encerrada, para si?Está. E em plena paz. Não sinto falta. A tirania da palavra está intacta quando escrevo prosa, é o que me faz sofrer. O que me faz falta é escrever melhor prosa, é por aí que quero ir.E faz sentido continuarmos a separar assim os géneros? Por exemplo, o texto de Maria Gabriela Llansol é o quê?O texto da Maria Gabriela Llansol é tudo. É o cúmulo da escrita. Ali nasce um novo trabalho da literatura, e eu neste momento só consigo ainda fruir, ler o texto momento a momento ao nível do prazer... não queria dizer êxtase, mas é quase isso... uma abertura para outra coisa que ainda não tem nome. Existe como um organismo superior, cria raízes, transplanta-se.Quanto aos géneros, os elementos da narratividade clássica, pura, as personagens que entreagem, o diálogo, a acção, estas categorias continuam a forçar a entrada nos meus livros. O que eu queria era justamente libertar-me disso, dessas coacções, desta ordem, chegar ao momento em que o texto apaga essa linha fria, clássica, controlada. Mas continuar na prosa, isto é na linha corrida e na sequência temporal, pelo menos. Há um texto seu chamado "Menina e Moça" [disponível no site Ciberdúvidas] que pode ser aplicado à linguagem. Ainda estamos aí, ainda há muito caminho para a frente?Há sempre caminho para a frente para o texto, para a linguagem. Para os livros, talvez não, mas o suporte não interessa, apesar de pessoalmente os livros me fazerem muita falta. Depende do grau de espiritualidade com que se for vivendo.

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