"Lisboa, Capital do Nada" já mexe em Marvila

Deitados no chão, sobre grandes mapas que reproduzem a freguesia onde vivem, três adolescentes pintam a cores, em papel vegetal, as curvas de nível da área cartografada. Preparam-se para fazer uma maqueta à escala 1:1000 do território de Marvila, na qual vão usar esferovite, gesso e tinta branca, alguns dos materiais oferecidos por empresas estabelecidas na freguesia.Ao todo são oito os miúdos e miúdas, entre os 12 e os 16 anos, envolvidos neste projecto que os entusiasma e que, no centro municipal da Flamenga, "os levou a descobrir o interesse pela carpintaria, um núcleo que até há pouco tempo quase não era usado", como conta Daniela Brasil, a coordenadora para a área do urbanismo desta iniciativa."A maqueta levou-os também a "descobrir o espaço e descobrir o que lá está e onde", acrescenta Daniela.Primeiro, os adolescentes começaram por desenhar os prédios onde moram, e foram ver outras maquetas de Lisboa: seja a que existe no Museu da Cidade, seja as que estão patentes em Braço de Prata, no edifício que a Câmara Municipal de Lisboa cedeu à Somague/Obriverca. Agora, estão a passar à acção e alguns dos miúdos que habitualmente frequentam o centro comunitário da Santa Casa da Misericórdia, ali mesmo ao lado, já pedem mesmo a Daniela para começar mais cedo, porque ainda têm muito trabalho pela frente.Este é um dos muitos projectos que floresceram a partir da iniciativa "Lisboa, Capital do Nada", que em Outubro vai movimentar a freguesia de Marvila, tentando não só colocá-la no mapa das existências da cidade, como dar aos que lá vivem e trabalham a possibilidade de se reverem no espaço público e de nele intervirem.Este projecto de intervenção social tornar-se-á mais notório aos olhos do público a partir de dia 1 de Outubro, em que atravessará toda a freguesia, com a realização de um cordão humano que, ao som do "Stand By Me", envolverá cinco mil pessoas de mãos dadas entre as bandas do aeroporto e a zona ribeirinha. "T-shirts" vermelhas com a inscrição "Dei as mãos por nada" estão já em preparação pelos "designers" que participam na iniciativa.Mas "Lisboa, Capital do Nada" faz-se de projectos múltiplos. Todos eles tentam, seja através de intervenções na paisagem de Chelas, ou de eventos culturais, chamar a atenção para este território, que aos de fora parece vazio de imagem urbana - desagregadoras que são as novas vias que o cruzam, passando ao lado de urbanizações dispersas, às quais falta continuidade no planeamento. A assinalar os eventos haverá "Portas para o Nada", como a que foi concebida pelo arquitecto Samuel Roda Fernandes, uma instalação tridimensional a instalar num baldio, ou numa zona incaracterística de transição entre o rural e o urbano. Haverá também "Autocarros do Nada", apoiando as movimentações das pessoas entre o casco velho e o casco novo de Marvila, e infocentros, pontos onde se pode obter informações sobre as actividades previstas.Transformar esta metáfora do nada num acontecimento urbano, que envolva as populações de Marvila e de outras zonas da cidade em formas de comunicação participativas, é o objectivo de "Lisboa, Capital do Nada".Tudo começou há já alguns meses, por ideia da Extramuros, Associação Cultural para a Cidade, criada há um ano com o objectivo de promover eventos no espaço público e suscitar debates sobre questões de cidadania.Anunciado em Maio passado, no Parque da Bela Vista, "Lisboa, Capital do Nada" tinha já então elaborados alguns projectos estruturantes, delineados por gente de fora da freguesia - antropólogos, geógrafos, arquitectos, urbanistas e artistas plásticos -, mas cedo começou a gerar expectativas entre a população local. Pensado como um evento cultural contínuo de 1 a 30 de Outubro, terá agora de ser algo mais, por exigência dos que já nele estão envolvidos."Agora, é a própria população que exige que isto não pare depois de Outubro. Os 'graffers' com quem temos estado a trabalhar já nos avisaram: isto tem de continuar, se não volta tudo ao mesmo", conta Mário Caeiro, da associação Extramuros, a quem cabe a concepção do projecto.E com a expressão "voltar ao mesmo" quer-se dizer ao mesmo alheamento, à mesma separação, entre os que são de Marvila e os que são de fora. Fruto dessa exigência, nasceu já um outro projecto, "Que futuro para o Nada?", uma interrogação através da qual a associação Extramuros se compromete a continuar a reunir-se com a população e com os apoiantes da iniciativa no centro municipal da Flamenga, uma vez passados os tempos de festa.Outro sinal de que o projecto mexeu com as pessoas traduz-se na apresentação de ideias pelas colectividades e associações da freguesia. "A Associação Marvila Jovem está ela própria a ir buscar gente e a trazê-la para o projecto. Agora foi um músico daqui, que não conhecíamos. O Nada já descobriu muita gente boa", salienta.Junto das onze escolas da freguesia também já houve uma boa recepção da ideia, que foi apresentada aos conselhos directivos, de fazer um "workshop" com as cinco mil crianças que frequentam aqueles estabelecimentos de ensino. "Como gostaria que fosse a cidade inventada?" é a questão colocada os miúdos, segundo um projecto que conta com a participação do psicólogo Carlos Céu e Silva.Numa espécie de "Sim.City", pede-se-lhes que imaginem que iam criar uma cidade a partir do nada. "Qual seria o nome?", "O que farias nela em primeiro lugar?", "O que é que não punhas na tua cidade?", "Quem escolherias para lá viver?" e "Quem não levarias para lá?" são algumas das questões às quais os miúdos irão responder.Nas respostas surgirão porventura algumas achegas ao projecto geral, que pretende criar a oportunidade de estimular a urbanidade e criar novos públicos culturais.

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