O risco das grandes heranças

O caso não é inédito. Quando um festival nasce com a fasquia muito alta e depois, em palco, se revela "abensonhado" - como sucedeu na anterior edição do festival do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (Cam/Acarte) - não lhe é fácil escapar à tentação de um público sempre pronto a estabelecer comparações imediatas, num processo de julgamento injusto mas natural e quase inevitável. Na história dos festivais em Portugal abundam os exemplos: pela importância histórica e/ou a sua qualidade e homogeneidade musicais, as estreias do Festival de Jazz de Cascais (1971), Jazz num Dia de Verão (1982) e Jazz na Cidade (1988) "assombraram" os anos seguintes, funcionando como autênticos padrões de aferição de cada novo cartaz anual. O mesmo poderá acontecer com o novo ciclo conceptual de Jazz em Agosto, totalmente dedicado às chamadas vanguardas e iniciado há um ano com uma programação histórica que ameaça tornar-se "juiz" das suas edições futuras. Embora avesso a este tipo de apreciação retrospectiva, há que reconhecer que dos cinco episódios já tocados nenhum entrou para o livro de ouro do Jazz em Agosto.A estreia com o New York Art Quartet (NYAQ) e Amiri Baraka revelou uma formação guardadora do espírito de um tempo em que o destino se jogava todos os dias, na rua e na música. Quando a radicalização da luta pelos direitos civis das comunidades negras da América se estendeu ao jazz, fazendo de cada instrumento uma arma, de cada músico um guerrilheiro, de cada verso um manifesto, o saxofonista John Tchicai, o trombonista Roswell Rudd, a bateria de Milford Graves e o contrabaixo de Lewis Worrell (mais tarde substituído por Reggie Workman) chegaram ao campo de batalha com uma identidade musical que logo os individualizou. Embora partilhando com os grandes nomes do free idêntica liberdade de improvisação e composição, expressa num mesmo gesto, o grupo explorava um mundo musical que ultrapassava, cromática e emocionalmente, as fronteiras da "estética do grito" e da "revolta musical" que ocupou e acabou devorando o coração do free jazz. O que mais impressionou no reencontro com o NYAQ, 37 anos depois do seu primeiro disco, foi a sobrevivência da convicção musical original, a manutenção de um compromisso colectivo que atravessou o tempo guardando fidelidade à sua matriz fundadora. Uma fidelidade que muitos ouvidos condenam hoje como "revivalismo" se praticada por nomes do jazz "clássico" ("Benny Carter toca da mesma maneira há 70 anos!"), mas que aplaudem como eterno testemunho de "vanguarda" quando assinada por actores do free jazz dos anos 60 (como, por exemplo, um Cecil Taylor cujo corpo musical pouco mudou em dezenas de anos).Excluída a irrupção no discurso musical (instrumental, vocal e corporal) de uma forte coloração africana trazida por Milford Graves - e cuja coabitação com o "scat" de Amiri Baraka se revelou desajustada e não enriquecedora -, o NYAQ veio ao Jazz em Agosto dizer que toca hoje como ontem, num concerto feito de descontinuidades, com momentos de forte criatividade - liderados por Rudd eTchicai, "alimentados" por Graves e não raras vezes tatuados pela memória de Albert Ayler - alternando com espaços de errância colectiva, sem paisagens dignas de registo, e sucumbindo à monotonia da excessiva presença de um Amiri Baraka cuja voz e versos soaram prisioneiras de um tempo e ambição antigas, quando cada esquina urbana da América podia ser uma trincheira da revolução. Baraka falou, recitou, invectivou como se o seu "Black Dada Nihilismus" permanecesse feito roteiro de libertação e as chamas de Watts continuassem assustando as noites brancas da América, fazendo de cada nota uma imensa parede para sempre gravada pelo grito do "Burn, baby, burn!" dos anos 60.O regresso de Henry Threadgill à Gulbenkian não foi excitante. Explorando uma espécie de cruzamento de "jazz moderno" e "jazz de câmara", a começar pela singularidade da instrumentação (sax alto/flauta, vibrafone/marimba, guitarra, baixo eléctrico, bateria) e a acabar numa arquitectura e identidade musicais mais dependentes da organização e habitação de espaços e climas sonoros do que de uma visível dialéctica de tensões e distensões discursivas. Em oposição ao nome do grupo, Make a Move, a música soou sedentária, numa sucessão de estruturas fechadas, lineares, por vezes quase "flats". Os actores mais estimulantes foram Bryan Carrott, no vibrafone e marimba, e Henry Threadgill na flauta.O ponto mais alto do festival foi, até agora, o piano solo de Matthew Ship, um concerto acústico trabalhado como um permanente processo de desconstrução e ressurreição do corpo dos "standards" (de "On Green Dolphin Street" a "Yesterdays"), através de um intencional bloqueio ou dinamitazação dos caminhos já andados, para melhor afirmar a busca e achamento de novas rotas. Como rio que vai da montanha ao vale, com rápidos, grutas, lagos e quedas de água, o piano multiplicou-se num largo espectro emocional, correndo do verso monossilábico à frase tumultuosa, em sucessivos "clusters", "slidings" e "hammerings", reinventando clareiras e ocupações do espaço. Em vez de variações sobre um tema, Shipp cria e inventa a partir dele, usando o texto original como pretexto e contrariando, em cada gesto musical, a tendência natural do público, sempre mais pronto a reconhecer do que a descobrir. E esse é um dos mais gostosos sabores da criação.As duas noites restantes não ficarão na (minha) memória do Jazz em Agosto. Ao "burn, baby, burn!" da véspera, o grupo Ponga contrapôs um desinteressante "freeze, baby, freeze!" Dominado pelo mimetismo instrumental das electrónicas de Wayne Horvitz e Dave Palmer e o sax "armadilhado" de Skerick, o concerto enredou-se num monótono jogo virtual em que cada voz parece ser aquilo que não é. O talento do baterista Bobby Previte é bem maior noutras músicas. Harriet Tubman + Double Trio também não deixaram saudade. A soma do universo dos DJ com o trio do guitarrista Brandon Ross (onde o papel de Graham Haynes foi, ao contrário do de DJ Logic, absolutamente irrelevante) é uma espécie de rhythm & blues dos anos 90. Mas enquanto no r&b é o corpo que entra pelos instrumentos dentro possuindo-os, aqui são as máquinas que conquistam e escravizam os homens, num processo acelerado de robotização. Ponga e Harriet Tubman soaram(-me) como duas faces da desumanização da música.

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