"Compor é descobrir e reinventar"

O compositor inglês Simon Bainbridge esteve pela primeira vez entre nós no âmbito da primeira audição portuguesa de "Concertante in moto perpetuo". Obra por ele escrita em 1983, fez parte do programa de apresentação da OrchestrUtopica no Teatro da Trindade, ocorrida na quinta-feira passada. Bainbridge, nascido em Londres em 1952, é um dos compositores britânicos mais brilhantes da actualidade. Atingiu uma notável projecção internacional a partir de 1997, quando, escolhida entre 181 obras, a sua "Ad Ora Incerta" - quatro canções orquestrais sobre textos de Primo Levi - ganhou o prestigioso Grawemeyer Award for Music Composition. Em Lisboa, apresentou uma conferência na Universidade Nova, dirigiu um seminário na Escola Superior de Música, assistiu à interpretação da sua obra e falou com o PÚBLICO.Simon Bainbridge - É muito importante criar núcleos estáveis de intérpretes que se dediquem especificamente aos novos repertórios. Isto parece-me ser especialmente importante em Lisboa, onde, segundo tenho entendido, não existe nenhum agrupamento realmente de referência, ou potencialmente de referência, neste âmbito. Grupos como este (por exemplo, a London Sinfonietta) tiveram, na segunda metade do século XX, a importante função de redefinir o papel dos compositores de música erudita. O facto de encomendarem regularmente composições, como penso que irá fazer a OrchestrUtopica, fez com que crescesse notavelmente o repertório. A disseminação internacional da nova música é outro dos contributos fundamentais deste tipo de agrupamentos. Pensa que deve ser uma prioridade para os compositores o envolvimento nestas iniciativas?É uma questão de tempo e de ter qualidades para administrar este tipo de projectos. Só isso. Acho, contudo, muito importante o envolvimento dos compositores, já que são eles quem tem a noção mais exacta da música que deve ser tocada. Está a acontecer, de maneira cada vez mais frequente, que as pessoas que gerem as orquestras e os agrupamentos do tamanho da OrchestrUtopica tendem a ditar qual é o tipo de música que o público quer ouvir. Muitas vezes essa música não é demasiado estimulante intelectualmente, mas é tocada porque essas pessoas acham que é aquela que leva as pessoas às salas de concertos. Mas porque é que no seu entender é tão importante o envolvimento dos compositores na programação das salas de concertos?É mais fácil que um agrupamento gerido por compositores apresente uma programação mais diversificada. Quando encaramos a relação entre o compositor e o público, estamos a abordar um complexo problema de comunicação, porque programar trata-se, no fundo, de descobrir a maneira de comunicar com o público. É necessário idealizar programas apelativos, concebidos numa perspectiva internacional, que chamem uma larga audiência. Tanto os compositores como os intérpretes devem estar envolvidos nesse processo. Em Londres, temos uma organização, o Composer's Ensemble, que tem um grande sucesso. Trabalha fundamentalmente sob orientação dos compositores e tem tido um papel importante na transformação da ideia de programa, propondo concertos temáticos centrados, por exemplo, em determinados países ou em assuntos históricos.Para si é fundamental compor tendo sempre presente a ideia de risco. Não considera que adoptar certos riscos pode ter como consequência o afastamento do público da música contemporânea?Estamos envolvidos num meio - tanto na Europa, como nos Estados Unidos - onde a cultura e as artes são menosprezadas. É promovida uma música fácil, onde não há lugar a nenhum tipo de desafio intelectual. Perdeu-se o gosto pela arte entendida como um estímulo, e isto faz com que alguns componham pensando exclusivamente no que imaginam que o público irá apreciar. Embora, para mim, a comunicação com o público seja uma questão fulcral, acho que esta atitude é contrária àquilo que deve ser a composição: descoberta e reinvenção, ao mesmo tempo que um desafio pessoal. Quando se perde isto, perde-se qualquer coisa verdadeiramente preciosa. Isto preocupa-me muito e acho que seria necessária uma maior proximidade entre compositores, de maneira a poder discutir assuntos deste género. Não estou, porém, a pensar em riscos extremos. Estou a defender a possibilidade dos compositores escreverem para eles, de serem indivíduos, de se desafiarem a si próprios.Deve ser, portanto, bastante crítico em relação ao papel das etiquetas discográficas na difusão da música contemporânea...Os editores discográficos querem vender o maior número possível de discos, essa é a sua única meta. Por exemplo, o responsável da Sony em Nova Iorque acha que está a fazer um grande serviço à música contemporânea encomendando obras a compositores que, obviamente, são escolhidos conforme a garantia financeira que oferecem. Esta política terá como efeito evidente que as vias menos integradas ficarão fora do mercado discográfico. Por exemplo, em Londres é, de facto, cada vez mais difícil conseguir gravar novas obras.Não considera que os compositores têm tendência a esconderem-se demasiado por detrás de discursos meramente técnicos quando falam acerca das suas próprias obras?A mecânica da composição é fundamental para os compositores, mas é certo que tem desaparecido a tendência de falar acerca do que sentimos quando compomos. Acho muito importantes as conexões emocionais da música. Não me refiro a uma forma sentimental de fazer e de escutar a música, mas à tentativa de ligar as pessoas através da música num nível emocional, que é também intelectual. De que maneira tenta fazer isso na sua própria música?As duas coisas mais importantes para mim, em todas as peças que escrevo, são conseguir a ligação com os meus ouvintes e fazer com que sejam para eles evidentes as minhas intenções no que diz respeito à articulação de cada obra. As ideias, o material musical, devem estar apresentados da melhor maneira possível. Além disso, como a música é uma arte essencialmente temporal, é para mim especialmente importante conseguir que o ouvinte apreenda de uma maneira diferente o tempo, e essa nova maneira deve ser induzida pelo próprio tempo musical, criado na composição.

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