Sequeira Costa : "É preciso ressuscitar o cadáver dos concursos"

Criado em 1956 pelo pianista Sequeira Costa, em memória do seu mestre, o Concurso de Piano Vianna da Motta rapidamente atingiu grande prestígio internacional. Depois de duas edições em Macau (em 1997 e 1999), a iniciativa regressa a Lisboa a partir de hoje e promete algumas novidades.

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Nota aos leitores: entrevista com o pianista Sequeira Costa, originalmente publicada a 19 de Julho de 2001

Ao longo dos seus quase 50 anos de existência, o Concurso Internacional de Piano Vianna da Motta ultrapassou numerosas barreiras e dificuldades, mas viveu também muitos momentos de glória, tendo distinguido nomes tão incontornáveis como os de Naum Shtarkman, Vladimir Krainev, Nelson Freire, Viktoria Potsnikova ou Artur Pizarro. Esta sua XIV edição será disputada entre 82 candidatos oriundos de 25 países — entre os quais os portugueses Paulo César Oliveira, de 22 anos, e Ângelo Miguel Martingo, de 28 —, que serão seleccionados por um júri de 14 membros. As primeiras eliminatórias terão lugar a partir de hoje no Conservatório de Lisboa (das 10h às 14h e das 16h às 20h45), recordando assim aquele que foi, durante anos, o fecundo local de trabalho do grande pianista, pedagogo e compositor. Entre os dias 25 e 28, o concurso muda-se para a Gulbenkian, onde irão decorrer as provas finais, a solo e com orquestra (das 19h às 22h30).

PÚBLICO — A presente edição do Concurso Vianna da Motta terá algumas diferenças em relação às anteriores?
SEQUEIRA COSTA — Sim. Em duas vertentes. Uma delas é que os concorrentes semi-finalistas vão tocar obras contemporâneas representativas dos seus países. Outra é em relação ao júri. Depois de ter feito parte do júri de numerosos concursos mundiais cheguei à conclusão de que muitos resultados são injustos. Há membros que não são devidamente competentes. São burocratas, geralmente presidentes de concursos, que lidam apenas com a organização e que não têm conhecimento profissional. Há também pianistas com mais de 70 anos e até com 80 — pessoas cansadas que depois de um suculento almoço até podem dormir! Isso repugnava- me muito. Por isso, convidei elementos muito jovens, alguns deles com idades inferiores aos participantes. Ouvi-os tocar em concertos e concursos, ganharam prémios, têm talento. Acho que o julgamento desses pianistas é muito espontâneo e profissional.

Essa fórmula é comum a outros concursos?
Não, creio que é a primeira vez. Já em 1964 criei uma nova fórmula no Concurso Vianna da Motta. O finalista poderia tocar durante uma hora um conjunto de peças à sua escolha. Porque há intérpretes que têm uma tendência mais natural para tocar Chopin, Liszt ou Debussy… Assim, podem escolher o repertório com que mais se identificam. A partir daí, os outros concursos começaram a imitar-me. Penso que esta hipótese de incluir elementos muito jovens no júri vai ser também uma revolução. É preciso renovar o cadáver dos concursos internacionais. Há uma grande inflação de primeiros prémios. Só os membros da Federação Mundial de Concursos Internacionais — da qual o Concurso Vianna da Motta faz parte desde 1966 — são 150. Também não acho bem que os concursos atribuam o primeiro prémio por tudo e por nada. O vencedor deve ser um pianista formidável, com muito talento, personalidade e uma presença de palco excepcional.

Fundou o Concurso Vianna da Motta aos 27 anos. Como surgiu esta ideia?
Quis homenagear a memória do meu mestre. Foi uma espécie de amor espiritual. Trabalhei com ele durante nove    anos, até à sua morte. Era um homem excepcional, tinha uma cultura vastíssima. Acabou por se enterrar neste país. Ele quis fazer qualquer coisa por Portugal e conseguiu melhorias nalguns aspectos mas, se tivesse ficado na Alemanha até ao fim da vida, teria tido ainda mais repercussão mundial. A certa altura verifiquei que ninguém fazia nada por ele. Seis ou sete anos depois da sua morte e nem sequer o nome de uma travessa em Lisboa… Lembrei-me então de criar um concurso com o seu nome. Estávamos em 1956, tive o apoio do Ministério da Educação, mas naquela época era muito difícil a aceitação de um concurso internacional. Eu não podia deixar de convidar países de Leste, algo que eles não queriam. Lutei imenso e acabei por ter autorização, mas logo na primeira edição os três primeiros prémios foram concedidos a dois soviéticos e a um polaco. Foi um grande sarilho. Houve um entusiasmo delirante do público que se manifestou pelas ruas da Avenida da Liberdade [o concurso realizou-se no Tivoli]. Tudo isso coincidiu com o primeiro Sputnik soviético. O país estava em efervescência. Logo a seguir tive uma carta da Presidência do Conselho de Ministros a proibir-me de continuar.

Como é que o conseguiu retomar?
O concurso esteve seis anos sem se realizar mas, como sou muito teimoso e persistente, fiz os dois concursos seguintes no Cinema Império. Como quem faz um espectáculo, pagando a sala, obtendo vistos de trabalho. Foi um tremendo esforço. A partir desse momento as autoridades acabaram por se convencer de que era mesmo um concurso internacional. Felizmente, ganhou um soviético, Vladimir Krainev, mas também um brasileiro, o Nelson Freire. São pianistas fabulosos, hoje com grandes nomes. A ideia do concurso fez que com que todos estes artistas levassem o nome de Vianna da Motta e de Portugal ao mundo inteiro.

Entretanto, criou uma Fundação Vianna da Motta em 1995. Quais são os seus objectivos?
Quando se ganha o primeiro prémio Vianna da Motta há uma certa facilidade em prosseguir a carreira. Os “managers” chamam-nos com mais facilidade. Mas há os segundos, os terceiros, os quartos prémios… que são geralmente atribuídos a pianistas muito bons. Às vezes, é por uma vírgula que não conseguem o primeiro lugar. Um dos projectos desta fundação, sediada nos EUA, onde vivo, é a edição de discos com os finalistas e a organização de concertos. Por outro lado, estou a tentar traduzir livros portugueses sobre Vianna da Motta, por exemplo o de Lopes- Graça e o de João de Freitas Branco, e também escritos do próprio Vianna da Motta.

O que é que Vianna da Motta lhe transmitiu de mais importante como pianista?
Uma inabalável força de vontade e, sobretudo, um respeito total pelo compositor. Actualmente, a maior parte dos pianistas não tem o mínimo respeito pelo texto. Tocam como os tempos actuais, com stress, com velocidade, forte demais, de uma forma espectacular, “show-off” como se costuma dizer. O público habitua-se a essas coisas e quando vem um artista sério, que toca o que está lá escrito, estranha. A maior parte do público não compreende a música erudita, embora não seja culpa dele. Acho que se devia incutir desde a infância uma disciplina musical e artística, assim como é obrigatório aprender matemática ou biologia. Aqueles que quisessem, os que têm talento, poderiam seguir, os outros teriam pelo menos uma boa preparação e quando fossem aos concertos saberiam o que estavam a ouvir.

A ausência de um ensino musical adequado faz perder muitos talentos…
Justamente. Ensina-se de qualquer maneira e as pessoas perdem o entusiasmo. Não têm o ambiente propício e não têm aqueles incentivos que um país deve dar através do Estado. Nesse aspecto, na ex-URSS não se perdia um único talento. Os músicos eram protegidos, tal como os atletas. Claro que isto era também uma forma de propaganda na Europa e no mundo inteiro. Mas o que é certo é que saiam de lá pianistas, violinistas e violoncelistas extraordinários.

Que outros princípios fundamentais procura incutir aos seus alunos?
Por um lado, a disciplina e, por outro, a cultura. O pianista ou o músico que quer seguir carreira deve estudar também outras disciplinas — história de arte, filosofia, etc. — que lhe permitam ter uma cultura vasta. Isso só reverterá a favor da sua própria linha interpretativa. Porque há muitos pianistas que só tocam piano e não querem saber de mais nada. Menciona-se um escritor, um poeta, um pintor e eles nunca ouviram falar.

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