Rebobinar a Memória

E se fosse possível contar um filme ao invés, repetindo a causa na continuidade da consequência? Quando se estudam os escaninhos da memória, que limites existem para explicitar a distinção entre o real e o ilusório, entre o pesadelo pós-traumático e a construção de uma ficção permanente, que confunde tempos e espaços?

Exemplo acabado de um cinema independente, de intelectual exercício críptico encostado à indústria, "Memento", do realizador e argumentista Christopher Nolan, coloca questões muito interessantes, partindo de uma forma de amnésia selectiva que leva o protagonista a apagar todas as reminiscências posteriores a um acidente que o vitimou.

Dadas as premissas, começamos a função do presente para trás: Leonard Shelby (Guy Pearce, um misto explosivo de galã e de durão, algures entre Brad Pitt e Willem Dafoe) passeia-se em luxuoso Jaguar, vestindo fatos de marca e pagando a sua estada num discreto Motel com dinheiro sonante. Cedo nos apercebemos que persegue o presumível assassino da mulher, responsável também pelo choque que o desmemoriou.

Contudo, mais importante do que a história fragmentada, que reconstituímos de resquícios de narrativa, revela-se o método que o protagonista usa para manter vivas as suas impressões do passado recente, antes que se lhe eclipsem: polaróides anotadas, notas dispersas, um volumoso arquivo e informações tatuadas no corpo. No centro da personagem está a consciência do seu estado psíquico, acrescido de um forte complexo de culpa em relação a um caso semelhante ao seu, face ao qual se teria mostrado insensível, no seu papel de investigador de seguros.

As incongruências de base desencadeiam um forçado flash-back constante, rebobinando a memória: como chegou um agente de seguros a semelhante exibição de sinais de riqueza? Como veio a estabelecer contacto com Teddy (principal candidato a assassino castigado), ou Natalie, manipuladora figura feminina, frágil resto de "femme fatale"?

Pelo complexo dispositivo ficcional que conta a meada do "fim" (existe fim?) para o princípio passa o melhor e pior deste "thriller" psicológico. De forma sistemática, recuamos cena a cena, acrescentando, elemento a elemento, na leitura de uma paranóia. Sempre em crescendo vamos rumando a múltiplas inversões das expectativas. Será o imaginário "segurado", cujo nome tatuou na mão, apenas uma sublimação de culpa própria? Quem manipula quem, na vingança que vai eliminando "pequenos" culpados de outros crimes (corrupção policial, tráfico de droga)?

Filme aberto, por definição, "Memento" encalha na sua própria ambição de complexidade. O que se pretendia inteligente desconstrução e reconstrução de um "thriller" clássico acaba por resultar em confuso exercício de estilo. Se somos obrigados a permanente atenção ao detalhe, perdemo-nos em inúteis repetições, que estabelecem as pontes. Se é interessante o modo como se relativiza a verosimilhança da acção, esfacelada por mil estilhaços, o cansaço acaba por se instalar. O retrato de uma neurose não justifica todo o aparato narrativo; a psicose do protagonista esgota-se numa explanação demasiado longa de sinais.

Dito isto, "Memento" possui a vantagem de não repetir fórmulas, de tentar descobrir caminhos próprios, de reconfigurar imagens: Carrie Anne Moss ("The Matrix") ganha uma dimensão perturbante de anti-"femme fatale"; Guy Pearce revela promissora "star-quality". Pelo menos estamos em terrenos inventivos de um cinema ainda fascinado com a sua própria descoberta.

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