Notas de um dia nos bastidores do FITEI

Três galhos de arruda grandes, dois maços de guiné, dez espadas de São Jorge, dois pés de comigo-ninguém-pode, 50 folhas de samambaia de jardim. Anabela focou o fax mais uma vez, para ver se estava a "enxergar direito", como diriam os remetentes. Estava. O Grupo Galpão, uma das companhias que fazem parte do cartaz da XXIV edição do FITEI - Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica, fazia mesmo questão de encher o cenário de "Romeu e Julieta", que hoje tem a sua primeira apresentação (ver texto ao lado), com uma boa dose de espécies vegetais místicas de nome enigmático e paradeiro incerto. Por estranho que pareça, mesmo num festival onde quase só se fala português e castelhano - entre uma ou outra aparição basca ou catalã - há lugar a certos mal-entendidos. Pelo menos é o que se conta numa sede cheia de nervoso miudinho: enquanto confere os recortes da imprensa do dia, Luísa lembra outro episódio com sotaque. "Parece o caso daquele brasileiro que queria Durex. Mandei-o à farmácia. E ele só queria fita-cola", ri-se. E o telefone toca outra vez.O festival vai mais ou menos a meio, e obviamente não há mãos a medir. De manhã à noite, a velhinha sede do FITEI entope-se de telefonemas, e-mails, faxes, gente à procura de bilhetes, companhias acabadinhas de chegar do aeroporto em busca de credenciais e orientação, e pessoas como a Carmelinda Guimarães, a crítica brasileira que chega cedinho carregada de rebuçados e malmequeres - e que só por uns segundos abdica do bom humor militante para se ofender quando alguém a acusa de ter "amigos de direita". Apesar da revolução inevitável, a coisa corre sobre rodas numa sala apinhada onde a foto de Jardel convive com os mapas que detalham o itinerário das companhias. Claro que não está a ser fácil arranjar a "salsicha de seis metros" que os Fura dels Baus encomendaram, juntamente com "muitos extintores", para o aguardadíssimo "OBS", mas a filosofia corrente parece ser uma espécie de "o homem sonha, a obra nasce" em versão pragmática. Anabela, uma actriz que raramente consegue emprego porque o Porto "é uma cidade onde a cultura não acontece", ilustra com o caso da companhia que pediu galhos e troncos - a Divisão de Parques e Jardins da Câmara Municipal do Porto teve de entrar em campo e organizar uma visita guiada às quintas da autarquia -, mas há uma história mais rocambolesca que envolveu um périplo pelos ecopontos da cidade. Aconteceu com a Confraria Luso-Brasileira, que chegou de mãos a abanar para montar "Dois Perdidos numa Noite Suja", o maior fenómeno de popularidade do festival, graças à participação do telegénico actor de novelas Alexandre Borges. "A gente pegou bidões, caixotes, mesa, cadeira, lavatório daquele antigo com jarra e bacia, baú, janela. No dia seguinte, o cenário estava montado", resume Charles Lopes, o responsável pela cenografia, convertido de alma e coração às virtudes da separação dos lixos.Durante a tarde, o pessoal técnico dos Coribantes, a companhia porto-riquenha que trouxe "La Última Tentación" ao Rivoli, tem um cenário para montar, luzes por afinar e muito que martelar. A montagem é muito democrática, e o próprio director da companhia agarra num agrafador para pregar a serapilheira ao estrado. Mas nem sempre é assim: nas horas mortas em que não há refeições tribais, ensaios ou espectáculos, as opções são muitas: há quem aproveite para dormir uma sesta, dar uma volta pelo centro da cidade ou resolver problemas de última hora. Luis Enrique Romero, por exemplo, teve mesmo de procurar - a pé, porque o autocarro do festival ainda estava nas redondezas do aeroporto, à espera de meio Grupo Galpão - uma farmácia para dar cabo das dores de garganta, um mal algo inoportuno em véspera de estreia. Grande parte do trânsito oficial do festival passa, porém, por Fernando Seixas, um pré-reformado que também fez carreira como cantor e é agora o coordenador de transportes do FITEI, e pelo motorista António Borges, que fica grande parte do dia à porta da sede, "a receber insultos" dentro de um autocarro estacionado em segunda fila. "Uns portam-se melhor do que outros, mas corre sempre tudo bem. Há sempre uma certa euforia à chegada, gente que não consegue cumprir horários. É preciso ter sensibilidade e tolerância: sabe como são os artistas...", confidencia Fernando Seixas. E os artistas às vezes são exuberantes, como os porto-riquenhos, que transformaram a miniviagem do restaurante até ao Rivoli numa "festa de arromba", conta António Borges durante a ronda dos hotéis que precede o almoço. É exactamente nessa altura que Rute Miranda, a relações-públicas do FITEI, assume o comando das operações - uma tarefa que às vezes implica "arrancar alguém da cama" e ter sempre actualizada a contabilidade das refeições no D. Tonho. Que se vão mastigando à beira-rio, entre as guitarras dos Coribantes, o sal abundante que cobre as batatas e o frango de Tanah Corrêa, o encenador de "Dois Perdidos numa Noite Suja", e algumas diferenças transatlânticas. No jantar de sexta-feira, Gabriel Villela, o encenador de "Romeu e Julieta" a braços com uma crise de "jet lag", ilustrava, entre duas garfadas de arroz de berbigão com muitos coentros, o comportamento português no Brasil: "No avião, tinha uma senhora portuguesa sentada do meu lado. De repente, começou tirando jóias da bolsa e botando tudo no corpo, mas sem tirar os olhos de mim. Aí me esclareceu: 'Sabe, vim ao Brasil visitar os meus netos, mas não pude usar nada. Eles estão roubando tudo'". Para pôr o sono em dia, um dos pontos altos da programação - uma elogiadíssima "Lulu. La Capsa de Pandora (una tragèdia-monstre)" posta em cena pelo Teatre Nacional de Catalunya - ficou para outra altura. O Grupo Galpão foi dormir, os Coribantes fizeram um ensaio geral e o público de um festival que "continua familiar, mas já foi menos pomposo" dividiu-se entre o veludo vermelho do S. João e o aconchego da sala mais pequena do Rivoli. Para fazer uma festa que continua até 10 de Junho.

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