Liberdade e ética

Li, com especial cuidado e interesse, a imprensa da passada semana, nos comentários ao caso do "Bar da TV". E se, por um lado, o caso é em si mesmo indigno (de resto, na linha do crescente "lixo televisivo"), por outro reconforta verificar que sobre ele emergiu uma opinião favorável à necessidade da defesa da dignidade humana (dos participantes e telespectadores) em programas televisivos que se vão degradando sem escrúpulos, numa competição lucrativa brutal. Ao lado de muitas e fortes vozes de editorialistas e comentadores que, de modos diversos, levantaram uma questão que assim aparece no âmago da nossa cultura da dignidade da pessoa humana, a Nota Pastoral dos Bispos Portugueses sobre a questão da cultura e dos valores na sociedade fica pálida e quase apenas alusiva.Há muitas definições de cultura e de ética, legítimas e para vários fins (definir ou distinguir é sempre uma operação de reflexão e de teorização). Pedro d'Orey da Cunha, que tanta falta nos faz para a reflexão das questões da educação, deixou-nos uma distinção muito sugestiva entre cultura e ética, num ensaio que subintitulou "um problema de educação moral" (v. o livro Ética e educação, ed. UCP). Aí afirma que "a cultura é a articulação (social) do gosto"; e que a ética "é a articulação racional do bem". Ora hoje, o gosto está na ordem do dia - talvez mais como desfrute do que como "articulação social", mas, em todo o caso, não podemos desconhecer que, por exemplo, temos na orgânica do Governo um Ministério da Cultura, ao passo que seria chocante termos um Ministério da Ética. Contudo, a ética e a cultura ligam-se inevitavelmente. Pedro da Cunha escreveu ainda que "a moral é a incarnação da ética na cultura; ou, de uma forma mais pessimista, é a contaminação da ética pela cultura". Vem isto muito a propósito da questão de fundo que é colocada pelo fenómeno actual da televisão: queiramos ou não, é impossível fugir à questão dos valores e da moral. E da sua incidência para a vida social e para as funções do Estado. Que mais não seja, por amor da própria sobrevivência do Estado de direito e da democracia. Marcado pela experiência de vida, creio que tenho uma inclinação contrária à intervenção do Estado; e se sempre defendi (e defendo!) o "Estado social", também sempre combati a sua versão estatista - ao contrário de uma esquerda que só se compraz na solidariedade como tarefa (e poder) do Estado, e não a quer desenvolvida como tarefa (cultural e orgânica) da própria sociedade. Não obstante, parece que por vezes faz falta repetir que há um princípio clássico da necessidade do Estado. Justificado pelo princípio positivo da subsidiariedade. É esta a doutrina social da Igreja, que não agrada nem a liberais individualistas nem a socialistas colectivistas.Maria Filomena Mónica foi uma voz que se destacou, nos últimos dias, a recordar o problema clássico: "até onde deve ir o braço do Estado". E a lembrar ainda uma (primeira) formulação, também clássica, sobre um limite da liberdade individual: "isto faz mal, ou não, a outrem?". Mas desde logo esta formulação (gostaria de o sublinhar) lá tem a palavra mal! Ou seja: a questão do mal nunca desaparece como questão de uma esfera ética que o Estado tem que defender. Podemos colocar mais abaixo a fasquia do mal quando se trata do exercício da liberdade individual com efeitos apenas sobre o próprio. Mas, ainda aí, pergunto: pode a pessoa livremente degradar-se, prostituir-se, drogar-se, vender-se em escravidão, mutilar-se, suicidar-se, sem que o Estado nada tenha a ver com isso? E, porém, muito razoável que uma fronteira mais exigente de moralidade se deva estabelecer para defender os outros dos efeitos do exercício da liberdade de cada um. Por exemplo, a lei portuguesa aplicável à televisão diz que "não é permitida qualquer emissão que (...) atente contra a dignidade da pessoa humana". Esta é uma norma aberta; mas tem conteúdo que é preciso esclarecer e aplicar, sob pena de contradição. Como vários comentadores apontaram de um modo ou de outro, é necessário estabelecer limites, regras, autoridade reguladora, o que for adequado e justo mas também eficiente e democrático. Não está aqui em causa uma oposição entre a comunicação social, de um lado, e a sociedade e o Estado, do outro. A questão é com programações televisivas degradantes e exploratórias de fraquezas e fragilidades das pessoas. Com o fim dominante do lucro económico, numa concorrência comercial sem escrúpulos. Os sinais que estes programas dão à nossa juventude, e a toda a sociedade, são negativos. São os sinais de que, para ter êxito e fazer carreira na vida, mais vale uma qualquer notoriedade mediática do que o mérito pessoal do trabalho e do saber, do esforço e da virtude. A prática da cunha ou da influência empalidece, comparada com isto. São ainda os sinais de que é mais importante a vida virtual de romance, sexo, conversa de ninharias com pretensões de psicologia, do que a vida que se constrói racional e eticamente pelo esforço: na ascese da responsabilidade individual - e de relações pessoais que não são teatro à espera de aplausos ou de dinheiro.Temerosos de uma hetero-regulação, os responsáveis pelos canais televisivos em causa vêm admitir pactos de auto-regulação. Mas então porque os não fizeram já? A questão é tão velha... E não nos insultem com o argumento da liberdade de expressão. A liberdade de expressão também tem limites e pode ter regulação, como outras liberdades. Recordo-me agora: a liberdade de aprender e de ensinar, bem como a liberdade de escola, consagradas na Constituição, andam, com a actual equipa ministerial da educação, sob a expressa campanha da necessidade da sua regulação, estando já por lei criado um Conselho Nacional de Regulação do Ensino Superior. Pergunto: será que é mais perigosa a liberdade de uma universidade (pública ou privada) criar um curso para ministrar a maiores de idade (que fica dependente de prévia autorização administrativa), do que a liberdade de uma televisão criar programas para ministrar a toda a gente, incluindo crianças e adolescentes?Gostava de uma resposta... Satisfatória.

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