[31.] Livros e palavras escritas

As mães fazem imensas asneiras, os filhos também. Ninguém disse que ter filhos era fácil. Melhor ou pior, chega-se a adulto, mas não sem antes esgotar e desesperar aquela de que hoje se assinala o dia. Agradeça portanto à sua mãe e peça-lhe desculpa pelo adolescente impossível que certamente foi.

O valor da palavra escrita é incomensurável. A palavra, só por si, é onde o homem começa e o animal acaba: "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus." A palavra na origem de tudo. A palavra é Deus, segundo o Evangelho de João. Sem Verbo nem mesmo haveria Deus.Depois, a palavra é escrita. Os mandamentos escrevem-se na pedra. Antes de escritos, são de Moisés; depois de gravados são de Deus para toda a gente e para todo o sempre.Desde há dezenas de anos que os media audiovisuais dão primazia à palavra proferida ou à imagem e à música, subalternizando a palavra escrita. Esta ilusão de poder da palavra dita ou do audiovisual sem palavras é de vez em quando contrariada por anúncios de imprensa; ultimamente diversos reclames glorificaram a palavra gravada no papel.Fazem-no num segundo nível de leitura: não mostram o texto simplemente impresso nas páginas (isso há em biliões de anúncios) mas através duma fotografia dum texto impresso noutro objecto. O texto ganha o valor de prova, quase de prova policial. As palavras são tão importantes e apelativas que os anunciantes recorrem a livros ou folhetos para dar garantias de qualidade sólida e também, pelo lado prático, para conseguirem incluir imensa informação num único anúncio.As "tábuas de Moisés" do Banco Privado Português (BPP) têm sido reproduzidas semana após semana numa mesma posição da Revista do Expresso. Cada anúncio ocupa duas páginas e mostra duas páginas de um livro aberto. Há um efeito de transferência: o leitor lê a revista como se estivesse lendo um livro.Os reclames têm bastante texto e passam muita informação. Mas o mais importante é que dão um ar sério ao Banco. Tudo está num livro robusto, nem parece um anúncio. O texto é compacto, embora aligeirado com uma citação de abertura ou alguma ilustração ou um gráfico que "explica" a diferença entre a expertise e a esperteza saloia.O logotipo do Banco aparece discretamente num marcador de livro que sai sempre do meio das páginas, na direita baixa; e o slogan da campanha, surge, com grande originalidade, em nota de pé de página de todos os textos dos anúncios ("Só trata de dinheiro").Já os textos são menos perfeitos que a concepção geral da campanha. Há neles alguma superficialidade que só se suporta porque, de facto, estão impressos num livro. Se fossem lidos em voz alta não teriam credibilidade, mas aqui funciona a força da letra impressa.O anúncio da Air Luxor usa o mesmo conceito, ao reproduzir uma página de revista de texto em que se vê o "organigrama da empresa". No lugar natural do presidente da Air Luxor está "você". O cliente tem sempre razão, até na representação gráfica da hierarquia da empresa: "Você acima de tudo", diz o slogan que fecha o anúncio. Este reclame destina-se naturalmente a profissionais que sabem ler um organograma e pretende comparar-se pela positiva com companhias que não poriam o cliente em primeiro lugar.Num anúncio da Novis, a prova provada de que o serviço prestado pela companhia "é muito mais simples" faz-se pela reprodução fotográfica dum extracto do tarifário para chamadas nacionais da PT. A imagem do texto remete para uma factura que o leitor do anúncio conhece. Faz prova. Basta ao anunciante da Novis explicar a diferença, e é isso que faz o pequeno texto explicativo numa página quase toda vazia.Persuasivo é também um anúncio do farmacêutico Boehringer Ingelheim a dois medicamentos contra a tosse. Num fundo vazio, como nos anúncios do BPP e da Novis, mostram-se as reproduções dos folhetos dos comprimidos ou xaropes Bisolvon e Silomat. A reprodução da literatura médica dá o mesmo ar de enorme seriedade a esta publicidade, além de permitir passar um sem-número de informações (indicações terapêuticas, posologia, etc).A força simbólica do livro é também utilizada para publicitar um serviço de certificação de assinaturas digitais. Também este anúncio recorre ao livro aberto; passam sobre ele dois fios de arame farpado. A empresa Certipor anuncia que "está apta a emitir certificados digitais para geração de assinaturas digitais certificadas".O reclame é eficaz porque, tal como os anteriores, ganha força em utilizar a nobreza da palavra escrita impressa no seu símbolo máximo, o livro. Mas não deixa de ser irónico que, para anunciar um serviço moderno que permite substituir o livro e o papel (mas que precisa, entretanto, de evitar a fácil falsificação que não existe no papel), este anúncio recorra precisamente ao livro, símbolo do papel que pretende substituir, do frágil papel e do valor que nele tem uma palavra impressa ou uma assinatura manuscrita - o valor da eternidade.

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