Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea finalmente de «A» até «Z»

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Os dois volumes são fruto de doze anos de trabalho e apresentam quatro mil páginas, com 70 mil entradas lexicais DR

A Academia das Ciências de Lisboa lançou hoje oficialmente, ao final da tarde, no Salão Nobre da instituição, o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea. A obra é fruto de doze anos de trabalho e representa um marco na história da Língua Portuguesa, uma vez que desde a fundação da Academia, em 1779, nenhuma das tentativas conseguiu ir além do cabo das tormentas da letra "A".

Na cerimónia estiveram presentes o Presidente da República, Jorge Sampaio, e o ministro da Ciência e da Tecnologia, José Mariano Gago, para além do coordenador da obra, João Malaca Casteleiro (catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e presidente do Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Academia das Ciências) e os membros da Academia.Esta é já a terceira tentativa de elaboração de um Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, desde a criação da Academia das Ciências, em 1779. Em 1793 fez-se uma primeira tentativa, mas foi apenas compilado o primeiro volume, correspondente à letra "A". O projecto "repousou na poeira dos arquivos", como Malaca Casteleiro recordou, até 1956, ano em que foi retomado, mas por "falta de financiamento e apoio", disse o coordenador ao PUBLICO.PT, também "não logrou cumprir todos os objectivos".
Já em 1988, o projecto ganhou vida novamente, graças ao apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, a que se seguiu a colaboração do Ministério da Educação, que destacou professores dos seus quadros para integrar as sucessivas equipas de trabalho.
Ao fim de doze anos, a Academia pode finalmente lançar o Dicionário de "A" até "Z", logrando assim cumprir um grande objectivo, uma vez que era até hoje uma das poucas Academias das Ciências do mundo que ainda não tinha conseguido publicar um dicionário do seu próprio idioma.
O Presidente da República quis precisamente destacar este "grande feito" na sua intervenção e fê-lo de modo original e imprevisível. Mostrando um grande à vontade, Jorge Sampaio disse que lhe apetecia voltar aos tempos de estudante. "Apetece-me começar a minha intervenção com um grito académico. Viva a Academia das Ciências! Viva! Finalmente passámos o 'A', ao fim deste tempo!", gritou Jorge Sampaio, evocando as duas tentativas anteriores.
O Presidente disse ainda que este era um dia de "grande glória, que nunca tinha vivido", pois só ao fim de mais de dois séculos é que a obra viu a luz do dia e a Academia viu cumprido o objectivo da sua fundação.
Mas esta "obra de Santa Engrácia", como Sampaio lhe chamou, chegou finalmente ao fim e está à venda, desde segunda-feira. "Em boa hora, o enguiço, palavra que também deve constar no dicionário, foi quebrado", disse Jorge Sampaio, valorizando o trabalho da equipa da Academia das Ciências, fundamental para as 200 milhões de pessoas que falam Português.
Também o coordenador da obra, Malaca Casteleiro, valorizou o trabalho da equipa de académicos e mais de 60 colaboradores externos que levaram a bom porto esta publicação. "É como pairar à volta das palavras e podermos observar o pulsar da vida. Não chega a representar o custo de meio quilómetro de auto-estrada e é, no fundo, uma rede de auto-estradas, que funciona como uma espécie de pulmão, através do qual a língua respira", disse Malaca Casteleiro.
O coordenador terminou a sua intervenção, citando o poeta David Mourão Ferreira: "As palavras são como os seres humanos, gostam de estar em boa companhia". A partir do momento em que foi colocado à venda, as palavras estarão, segundo o coordenador da obra, "certamente bem acompanhadas".

Dicionário não passa incólume à polémica

Mas ainda não passou uma semana do lançamento e o dicionário já foi envolto em polémica. A grande novidade desta publicação - que se pretende mais descritiva que normativa - são os cerca de 750 estrangeirismos em uso que registam alterações de ortografia ou expressão sob proposta da Academia das Ciências.O Dicionário contempla mil estrangeirismos recentes, propondo a alteração do uso de aproximadamente três quartos dessas palavras, pela via ortográfica (aportuguesando ou semi-aportuguesando a grafia), ou recorrendo à tradução por decalque semântico.
Mas se Malaca Casteleiro e a Academia das Ciências valorizaram uma "preocupação patriótica com a Língua", à semelhança dos franceses e espanhóis, que recusam vivamente os estrangeirismos, há cada vez mais toda uma corrente que defende a não adaptação dos termos estrangeiros.
O linguista e professor catedrático na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Ivo Castro defendeu que os estrangeirismos "não são um pecado" e a sua incorporação num dado idioma é um "sinal de vitalidade", na sequência das traduções propostas pelo Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea. O investigador afirmou à Lusa que a tradução dos cerca de 750 estrangeirismos proposta no Dicionário "não é indispensável" para a defesa da Língua Portuguesa e defendeu que prefere os termos estrangeiros "deixados na forma original".
Consciente da polémica instalada, Mariano Gago focou precisamente a sua intervenção neste ponto, afimando que é bastante saudável que o Dicionário seja posto à disposição do público e dos especialistas para suscitar o debate e a crítica.
Após a publicação destes dois volumes, que apresentam cerca de quatro mil páginas, com 70 mil entradas lexicais, a Academia tem já na manga novos projectos. Estão a começar a preparar a segunda edição do Dicionário, com o objectivo de superar as falhas que ainda possam existir e a preparar a adaptação desta publicação para um Dicionário Escolar, com apenas um volume e um Dicionário de Sinónimos. Obras que têm mais uma vez como objectivo cumprir o lema da Academia das Ciências -"Se não é útil o que fazemos, a glória é vã".

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