As cenas domésticas de Johannes Vermeer

Há uma nova exposição para ser vista no Metropolitam Museum de Nova Iorque, nos Estados Unidos. Chama-se "Vermeer e a escola de Delft" e inaugurou na passada quinta-feira. Para se chegar a ela, é preciso atravessar um corredor monocromático. Aquele que alberga as esculturas, negras e brancas, de Auguste Renoir.Ao fundo do corredor Renoir, acontece uma explosão de cor. "A arte de pintar", de Johannes Vermeer, reproduzido em grandes dimensões, ocupa toda uma parede à entrada de uma exposição que pretende contextualizar a obra do mestre holandês. A primeira informação importante diz que o pintor, que ficou conhecido como a "esfinge de Delft", não foi uma esfinge. Não foi uma figura enigmática. Não trabalhou isolado e não foi quase às escondidas que produziu a sua obra. A "esfinge" nasceu porque a produção de Vermeer foi escassa. Nos poucos anos que viveu (nasceu em 1632, morreu 43 anos depois), terá pintado meia centena de quadros. Com segurança, estão-lhe atribuídos apenas 35, catorze dos quais estão na exposição do Met. Sabe-se que Vermeer nasceu pobre e casou acima da sua condição social. Que tinha cortinas verdes na sua casa de Delft e usava uma capa rematada com um friso de pele. Não ganhou fama em vida e a sua obra foi quase ignorada durante dois séculos, findos os quais nasceu a teoria da "esfinge".Vermeer, diz a tese subjacente à exposição, foi apenas um entre as dezenas de pintores que, por um acaso mal explicado e que, provavelmente, nunca será totalmente entendido, coincidiram num mesmo período de tempo - o último terço do século XVII - na pequena cidade de Delft. Detalhe relevante: Vermeer foi o mais notável do grupo que a exposição designa por "escola de Delft". Terminologia polémica - há historiadores da arte que sustentam não se poder falar em escola -, mas que o Met assume pela voz do seu director, Philippe de Montebello.Diz o director do museu que deve falar-se de "escola de Delft" não apenas porque existe uma temática aos artistas locais. Não apenas porque todos pintaram naturezas mortas, retratos de nobres, cenas de temática arquitectónica ou paisagens. Mas porque, sublinha Montebello, existia uma tradição artística em Delft (centro de produção de artesanato de luxo), cujas influências os contemporâneos de Vermeer (e o próprio) herdaram e desenvolveram, cada um da sua maneira. Justifica Philippe de Montebello: se Vermeer não tivesse vivido e trabalhado em Deflt, a sua obra seria, certamente, diferente, assim como a evolução do trabalho de "conterrâneos" como Pieter de Hooch, Gerard Houckgeest ou Carl Fabritius, o discípulo de Rembrant que se mudou para Delft e morreu, aos 32 anos, na explosão de um armazém de pólvora da cidade (o desastre está amplamente documentado). Obras destes e de outros dos 70 pintores que coincidiram na cidade no mesmo período de tempo, também formam a exposição, que é notável. Uma das razões da singularidade da mostra, que é uma colaboração do Met e da National Gallery de Londres, onde a exposição estará no Verão, é reunir obras que os museus hesitam em emprestar. Só uma vez os quadros de Vermeer estiveram reunidos, na única retrospectiva do artista, há seis anos, mostrada em Washington e em Haia, na Holanda. Explicam as legendas nas paredes do Met que foi uma tragédia que "empurrou" a comunidade artística de Delft na direcção certa. Foi nesta cidade holandesa que Guilherme, o Taciturno, príncipe de Orange e Nassau - liderou a rebelião, bem sucedida, contra a presença espanhola, que acabaria por levar à independência do território - foi assassinado, no final do século XVI. O seu sucessor, Maurício, mudou a sua corte de Delft para Haia, arrastando consigo os mecenas - a nobreza, as ordens religiosas - que alimentavam a "máquina" artística de Delft, mas também lhe moldavam o gosto, lhe definia cânones.Haia fica apenas a cinco quilómetros de Delft. Mas a distância provou ser a necessária para fazer aparecer a "investigação da cor e da luz", marca de união dos artistas de Delft de que Vermeer é o expoente máximo. Outra mudança que os historiadores da arte que escreveram o catálogo que acompanha a exposição sublinham é uma mudança na temática. As cenas tradicionais - as paisagens, os retratos... - dão lugar à intimidade doméstica. Ao jogo de luz e cor e à intimidade, Vermeer associou, como nenhum outro artista de Delft, a linguagem corporal e o jogo de intenções das personagens que povoam os seus quadros. O que se esconde por detrás dos gestos e das expressões em cenas tão banais como um homem a oferecer um copo de vinho a uma mulher? Ou o que oculta o movimento e o rosto da "Mulher segurando uma jarra"?Contextualizar a produção do mestre holandês é o objectivo da exposição. E, defende o director do Met, sustentar ou rejeitar a teoria de que existiu uma "escola de Delft" é o menos importante. Prioritário é fazer o visitante perceber que a produção de Vermeer não nasceu no vazio, não nasceu de um artista que foi uma esfinge, uma criatura fechada ao mundo e às suas influências. E tentar explicar porque razão numa pequena cidade como Delft, junto ao Mar do Norte - o nome Vermeer resultou da junção de Van der Meer, que significa "vindo do mar" -, existiu, no último quarto do século XVII, uma produção artística sem paralelo. O Metropolitan de Nova Iorque é, possivelmente, o museu mais tentador do mundo. Não só pelas exposições que apresenta - neste momento, além da que contextualiza a obra de Vermeer (que encerra a 27 de Maio), há outras duas temporárias, uma mostrando os tesouros da Catedral de Basileia, outra os desenhos dos renascentistas Parmigianino e Corregio -, mas também pelos "souvenirs" que as suas lojas oferecem. A lógica do Met, adoptada por outros museus em todo o mundo, é oferecer reproduções de obras de arte ou de seus pormenores. A exposição sobre Vermeer "oferece" jóias que são cópias das usadas, nos quadros, pelas mulheres dos artistas de Delft. Também há jóias egípcias, romanas, medievais, tapeçarias, "posters" e reproduções de esculturas de Renoir, em tamanho natural. Um aviso aos visitantes portugueses: a maior parte das cerâmicas e vidros à venda nas lojas do Met são "made in Portugal". A.G.F.

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