A França perdeu o louco cantador

A França chora a morte do cantor Charles Trenet como se lhe tivessem esfacelado um pedaço da alma. É que o intérprete de "Douce France", "La mer", "Je chante", era tão francês quanto Amália era portuguesa. O timbre da voz tem qualquer coisa da imagem jovial que este povo tem de si mesmo, tal como o milhar de canções que deixa gravadas lembram os diferentes ritmos de um domingo ideal da França profunda. Charles Trenet deixou-se morrer ontem de manhã, depois de ter decidido parar com os medicamentos que lhe prolongavam artificialmente a vida desde um primeiro acidente cardiovascular, em Abril último. Tinha 87 anos, e cantara pela última vez em público num concerto do seu amigo e discípulo Charles Aznavour, em Novembro de 1999. As reacções oficiais rivalizam de "tristeza e de emoção". Para o Presidente da República francesa, Jacques Chirac, "fugiu a alma" do poeta. "Charles Trenet era um daqueles poetas raros que dão a uma época as cores, os sons, a atmosfera que lhe ficam bem, e que lhe alimentam os sonhos", acrescentou Chirac.Não menos lírico o primeiro-ministro, Lionel Jospin, diz que a França "perdeu um dos seus maiores cantores, que (...) durante 70 anos a arrastou para o seu universo em que a melodia rima com a felicidade, e a nostalgia está impregnada de ligeireza". "A Doce França está triste", lamentou a ministra da Cultura Catherine Tasca: "Perante os dramas e as dores da vida, Trenet optara pela procura da felicidade". Charles Trenet nasce em Narbonne, em 1913, e aos 17 anos está já em Paris a tentar carreira como poeta, de noite, e a trabalhar num estúdio de cinema, de dia. Escreveu as primeiras letras de canções em duo com o pianista Jonhny Hess, e pouco depois, tinha ele 25 anos, conheceu os primeiros sucessos nos "cabarets" parisienses, apadrinhado pelo cantor Maurice Chevalier. É a época de Jean Cocteau, de Colette, de Sacha Guitry, intelectuais ligeiros e espirituosos que lhe chamam o "fou chantant" - o "louco cantador" - e que gravitam em torno da amizade que liga Trenet e o pintor e poeta Max Jacob. É nos finais dos anos 30 que o cantor inventa a sua "imagem de marca" - chapéu redondo descaído para a nuca, como se fosse um auréola, um cravo vermelho na lapela, e sempre de fato claro. Mas Trenet desposou também os recantos sombrios do século. Continuou a cantar para os alemães durante a ocupação da França pelo regime nazi, depois de ter provado, a pedido da imprensa pró-nazi, que não tinha sangue judeu - uma atitude que lhe valeu ser acusado de "colaboração e de anti-semitismo" no programa da Resistência francesa na rádio inglesa BBC. Mais tarde, depois da II Guerra Mundial será amigo de Charlie Chaplin e de diversos artistas americanos, num longa estadia nos EUA. O pintor Salvador Dali dirá aos americanos: "Não chorem [o compositor] Gershwin, a França tem um Gershwin, e ele chama-se Charles Trenet".De regresso ao seu país nos anos 50, o canto prossegue uma carreira brilhante, e Jean Cocteau, então um respeitável membro da Academia das Letras, faz um discurso pouco habitual numa cerimónia que celebra a venda de cinco milhões de discos: "Mal desenrolas um fio melódico, e ei-lo que se agarra de pessoas e pessoa, de coração em coração, como o fio da virgem entre os ramos".Nos anos 60, Trenet será preso por pedofilia, um episódio praticamente apagado da sua biografia. As hagiografias preferem reter a imagem de Trenet a celebrar a chegada da esquerda mitterrandista ao poder, em 1981, ou a do velhinho cheio de vida a apoiar outro idoso, François Mitterrand, na sua recandidatura às presidenciais de 1988. Um derradeiro disco, em 1999, assume uma velhice que o diverte, e que o desola.Charles Trenet vai a enterrar na sexta-feira, depois de uma missa de corpo presente na igreja da Madalena, em Paris.

Sugerir correcção