Clarice entre as ostras e o sorvete

Clarice e Hannibal mereciam estar sozinhos no mundo. Mas existe entre eles Mason Verger, que quer transformar Hannibal num "hors d'oeuvre tartare". A presente ementa tem para oferecer carne, sexo, sangue e o decote mais voluptuoso de Julianne Moore.

Hannibal Lecter quer saborear Clarice Starling, metê-la no menu entre as ostras e o "sorbet". Que saudades, suspira ele, das refeições de New England! E logo agora, que está desterrado em Florença... No caso dela, que já deixou de ser a favorita do FBI, Hannibal também é uma memória dourada que há 10 anos lhe deixa marcas, todos os segundos, no pensamento. Ela trá-lo consigo debaixo da pele. Clarice e Hannibal mereciam estar sozinhos no mundo. E mereciam que o mundo os deixasse à distância. Mas existe entre eles Mason Verger, que quer transformar Hannibal num "hors d'oeuvre tartare", substituindo o trabalho do cozinheiro com uma manada de Javalis. Mason Verger - faça-se a ligação - é a única vítima de Hannibal que sobreviveu, se é que se pode sobreviver com o rosto naquele estado, perante o qual o Homem Elefante é um caso sucedido de plástica. Mason/Gary Oldman quer vingar-se. E lembra-se de Clarice/Julianne Moore como isco. Ela e Hannibal/Anthony Hopkins não vão conseguir resistir a mordê-lo (o isco). "Goody goody", diz ele. Mas será mais um adeus, e ele sabe-o. Até à próxima sequela?Vai haver banquete, dos mais alucinantes e também dos mais paródicos (os macacos de "Indiana Jones e o Templo Perdido" evocam alguma coisa?). Também vai haver fogo-de-artifício, mas é um requiem para este "amour fou". É um filme triste, "Hannibal", de Ridley Scott, que ontem foi apresentado em Berlim (fora de competição), depois de uma antestreia para a imprensa em Paris. É barroco, excessivo, e se calhar é por essa via que a "continuação" se autonomiza do "original" - também se chega lá pela irrisão, e isso está igualmente no menu.O filme é uma surpresa, porque era legítimo temer pelos rendilhados de texturas com que Scott habitualmente se extasia (fumos, câmaras lentas e o resto). E porque Jodie Foster não estava lá. E porque Hannibal, mesmo no romance de Thomas Harris que o filme adapta, já existe mais como propriedade de Anthony Hopkins do que como personagem. Ridley Scott assumiu isso tudo: na Florença espectral onde agora se ouve o "silêncio dos pombos mortos" - e onde Hannibal dá os primeiros sinais de apetite, depois da ópera, a seguir a uma explicação de Dante e ao som do "Danúbio Azul", de Strauss; neste Hannibal agora investido pela fúria do sangue dos Borgia - aqui a parada do "gore" sobe de mãos dadas com a da "cultura" -, embora Hopkins pareça às vezes que está a fazer também o mordomo de "Os Despojos do Dia"; e, ainda, em Julianne Moore, que não consegue fazer esquecer Jodie Foster mas está aqui para nos lembrar que esse era "outro filme". Por mais marcante que tenha sido - e é - "O Silêncio dos Inocentes", de Jonathan Demme, a cerebral e reprimida Clarice de Foster não teria espaço em "Hannibal". Nunca poderia estar, por exemplo, tão perto de Hopkins, como na comovente sequência em que o canibal detém Clarice prendendo-lhe o cabelo à porta do frigorífico, e ela responde-lhe com algemas, e depois uma lágrima aparece no rosto dela. Hannibal quer carne, e não necessariamente para "fondue", mas não pode. É por isso que ela chora?. O medo puro de "O Silêncio dos Inocentes", os labirintos interiores dos traumas de Clarice/Foster, são aqui história do passado. A presente ementa tem para oferecer carne, sexo, sangue e o decote mais voluptuoso de Julianne Moore. De saturação em saturação, chega-se ao clímax, que não é propriamente um jogo de mentes que brilham. E também não é igual ao final do livro de Thomas Harris (em que Hannibal converte Clarice aos seus hábitos alimentares). Ao cheiro da carne, no filme, só se escapa pela transcendência. É o supremo sacrifício de Hannibal, por amor, antes do fogo de artifício. Depois, final em aberto. Até à próxima sequela? Goody, goody...É um "old fashioned film", e é das melhores coisas que a competição teve até agora para nos oferecer: "The Tailor of Panama", de John Boorman (Grã-Bretanha). Mistura o pessimismo habitual de John Le Carré, cuja novela o filme adapta, com a aventura ao estilo 007. Está lá Pierce Brosnan, é claro, mas só para reforçar a desilusão do filme: é um espião ao serviço de Sua Majestade que recruta um alfaiate (Geoffrey Rush) na crença de que o homem que veste os altos dignatários do país é o ideal para informador. Ora, Pierce é um "bluff", não está ao serviço de nenhuma ideologia (a não ser a dos dólares), e o cinismo não é sequer fachada (como no caso de 007). Quanto ao alfaite, é um pobre ex-presidiário. Ninguém é o que aparenta ser, e quem acredita em alguma coisa suicida-se. De "bluff" em "bluff" uma guerra até quase rebenta."The Tailor of Panama" é uma amarga farsa, e não pode deixar de evocar "O Americano Tranquilo", de Joseph Mankiewicz, baseado em Graham Greene. Até pelo seu nostálgico classicismo, é um filme com a consciência de que pertence a um passado que não volta mais.

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