Yeats e a Irlanda oculta

A grandeza de W. B. Yeats consistiu em dar voz a toda a mitologia de uma nação. «Fazemos da discussão com os outros retórica, mas da discussão connosco próprios poesia", disse ele.

O conhecimento de Yeats e a sua crítica são quase nulos em Portugal. E digamos que se trata de um autor propenso a provocar em quem o lê exclamações pretensiosas e vazias, comparações empoladas, hipérboles languescentes, enfim, toda a bagagem retórica dos zelosos amadores de oralidades populares e espiritualismos esotéricos.Dito isto, diga-se também que a grandeza de Yeats consistiu de facto em dotar de uma voz toda a mitologia de uma nação, fazendo irromper os antigos gestos irlandeses através da camada de silêncio em que o cristianismo católico os havia amortalhado. Tarefa gigantesca, e ainda mais notável se nos lembrarmos, por outro lado, da deliciosa espontaneidade de Yeats, que se serviu da linguagem falada mais terra-a-terra, sendo esse um dos traços originais da sua poesia. Na verdade, porque não dizer com simplicidade as coisas simples ? A frase corre, sem que nada, profundidade do pensamento ou cintilação insólita do verbo, se detenha um momento na corrida. Yeats é um poeta-narrador: a sua arte é a da narrativa. Poeta e narrador como o foram um Homero, um Virgílio e um Ariosto.Diz-se que um poeta é intraduzível. Este "Onde Nada Existe" ("Onde Nada Existe Deus Existe" é o título de um dos contos recolhidos) constitui o mais rematado desmentido desta asserção. Com efeito, o livro é excelentemente traduzido por Margarida Vale de Gato, também autora de um prefácio útil e pertinente. A recolha contempla todos os contos menos um ("Rosa Alchemica", já publicado em versão portuguesa de Helena Cardoso) de "A Rosa Secreta", mais um conto escrito em colaboração com Lady Gregory: "O Ruivo Hanrahan", segundo a tradutora "a única história completamente nova sobre o bardo do século XVIII dada a lume no livro de 1905 'Stories of Red Hanrahan' ".William Butler Yeats (1865-1939) podia ter preferido ser mais um expatriado, mas ao escolher a Irlanda, adoptando a política dos velhos fenianos e as orientações mitológicas de Ferguson e O'Grady, conferiu à hesitante escrita irlandesa do século XIX a força de um movimento literário. O seu primeiro poema longo a obter os favores do público, "As Viagens de Oisín" (1898) colocaram-no numa corrente que remonta a Macpherson; as peças em prosa do "Crepúsculo Céltico" e de "A Rosa Secreta", inspiradas em materiais históricos e folclóricos, deram origem à revalorização daquilo que depois veio a chamar-se a "Irlanda oculta"; o teatro e o movimento teatral por ele iniciado com o auxílio de Lady Gregory em 1899 propôs-se resgatar as lendas heróicas, o realismo rural, o imaginário popular e a língua gaélica. Mas uma das suas primeiras peças, "Cathleen níHoulihan" (1902), despertou tal inspiração sanguinária entre os nacionalistas que Yeats tomou a resolução de nunca mais voltar a escrever propaganda. As suas primeiras poesias misturaram numa síntese um tanto confusa as crenças encantadas de Sligo e Galway com a teosofia de Madame Blavatsky e o rosicrucianismo de McGregor Mathers, criando um sistema (de que "Onde Nada Existe" constitui brilhante ilustração) onde é atribuído à Irlanda o estatuto de terra sagrada com uma grande missão espiritual a cumprir nos dias de hoje.Nas obras deste período, Yeats combina os valores espirituais com a energia do paganismo antigo e uma atitude aristocrática em relação às ansiedades de um mundo mercantil. Com o virar do século, o seu estilo evolui do vago maneirismo pré-rafaelita da sua primeira lírica para um modo mais combativo, uma linguagem satírica que haveria de despertar controvérsia e provocar os célebres tumultos do Teatro da Abadia. Na sua nova maneira de ver as coisas, a velha Irlanda tinha morrido. Estava, como ele próprio disse, "enterrada no túmulo de O'Leary". O pessimismo de Yeats acentua-se depois da Guerra Civil irlandesa e da Revolução Russa de 1917 ("a terrible beauty is born", escreveu em "Easter 1916", um dos seus mais belos poemas). É a época em que se vê forçado a chegar à conclusão de que uma era decisiva na história do mundo tinha chegado ao fim e de que valores como a arte, a inteligência e a beleza, protegidos e defendidos por um aristocrático estilo de vida, estavam prestes a ruir. É esse o tema das grandes sequências líricas de "The Tower" (1928) e "The Winding Stair" (1933)."A Rosa Secreta", que constitui, como já se disse, a parte mais substancial de "Onde Nada Existe", recorre ao simbolismo rosicruciano, para o qual "a união da rosa (de quatro folhas) com a cruz forma um quinto elemento - um casamento místico - possuindo a rosa características sexuais femininas, e a cruz características masculinas, já que a rosa é a flor que brota do sacrifício da cruz" (A.N.Jeffares, "A New Commentary on the Poems of W.B.Yeats", citado pela tradutora no prefácio). Conforme escreve Margarida Vale de Gato: "Não deixa de ser interessante que a rosa seja, em grande parte dos contos, um símbolo apropriado pela religião pagã, mas que igualmente se associe à cruz, assim conjugando duas diferentes experiências espirituais e assumindo-se como paradigma dessa síntese operada na Irlanda entre elementos celtas e cristãos, patente na transmutação do caldeirão mágico dos druidas em taça do Santo Graal".Acusado de maneirismo, obscuridade e excessiva retórica, nem por isso deixa de ressoar na obra de Yeats uma voz inigualável. "Fazemos da discussão com os outros retórica", disse ele, "mas da discussão connosco próprios, poesia".O perfume, o balancear entre o verdadeiro e o irreal, a distância em relação à claridade demasiado intensa ou o nevoeiro ainda vivo nas províncias da Irlanda, tudo isso se encontra na obra de Yeats, particularmente nos contos recolhidos em "Onde Nada Existe", cujo encanto se insinua em nós e aí se mantém e desenvolve.

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