Tráfico

O Portugal moderno visto através de uma lente que o distorce e o transforma em múltiplos estilhaços coloridos. É isto, se calhar, o mais importante: a relevância sociológica está lá mas subjuga-se aos ritmos da farsa e ao traço cruel da caricatura; é a isso que João Botelho se refere quando fala de "documentário" mas ao mesmo tempo avisa que "Tráfico" não é "sobre a vida" mas "sobre ideias de vida". O Portugal de "Tráfico" é um Portugal "mediatizado", como uma espécie de "sonho" da televisão, e decompõe-se numa série de vinhetas tão mais anti-televisivas quanto se apropria dos seus processos e dos seus tiques (e dos seus actores, também) para os devolver transfigurados da cabeça aos pés ? em última análise, é um filme sobre a ideia de Portugal veiculada pela televisão. E pode não ser o melhor de João Botelho mas é certamente o que mais perspectivas e mais caminhos abre ao seu cinema.1999/01/22


Desenhado, musicado e pintado como uma operação de guerrilha, "Tráfico" é um retrato impiedoso ? mas surpreendentemente emotivo ? sobre o Portugal de agora. Este é o país ? com um governo socialista mas onde o capitalismo nunca foi tão mesquinho, como diz o realizador ? onde se traficam dinheiro, armas e influências; onde a miséria é o espectáculo da televisão. E este é o filme onde se faz espectáculo disso tudo. Onde se canta o fado do Hino Nacional ao lado dos "dois fados mais ridículos e que mais sustentaram o fascismo português", segundo o realizador, "A Casa Portuguesa" e "Não é Desgraça Ser Pobre". "É claro que é desgraça ser pobre!", conclui João Botelho. PÚBLICO ? Declarou algures que "Tráfico" estava para o guterrismo como "Aqui na Terra" (1993) esteve para o cavaquismo... JOÃO BOTELHO ? E antes, no início do cavaquismo, fiz "Tempos Difíceis" (1987), sobre a ascensão dos novos-ricos, apesar de ser uma interpretação abstracta de um romance de Charles Dickens. Na altura de "Aqui na Terra" achei que devia voltar a falar disso porque pensava que se confundia o poder com o dinheiro. Hoje não acho isso. O que conta é a troca, o dinheiro nem existe: quando pensamos que na Bolsa se faz circular diariamente mais dinheiro do que o que o mundo é capaz de gerar no mesmo dia... A especulação financeira, o tráfico de armas, o tráfico de influências é que mexem a vida e as pessoas. Achei que devia falar disto de maneira divertida, pôr umas pausas para as pessoas poderem ir à casa de banho, etc. Por isso é que o filme parece um bocado caótico, embora não o seja... É um filme sobre ideias de vida, não sobre a vida. P. ? Ainda não se referiu ao comentário... R. ? Tudo parte de uma pergunta: como é que as pessoas se podem divertir hoje em Portugal? E há uma frase de Shakespeare de que gosto muito e que pus no filme: "Sejamos facciosos para reparar as injustiças do mundo." Fui pelo excesso, mas partindo de fontes de inspiração reais. Noutro país qualquer este filme não existia, porque é um filme sobre Portugal, sobre a maneira como os portugueses se divertem. E acho engraçado que exista uma ficção sobre Portugal; se calhar daqui a uns anos isto é um documentário... P. ? É curioso que sendo um filme tão ácido, exista um grande carinho pelas personagens... R. ? É verdade. Primeiro, gosto muito dos actores. Depois, sou menos maniqueísta do que era. Quem sou eu para decidir o que é o Bem e o que é o Mal? Todas as pessoas têm um bocado de Bem e um bocado de Mal. Uma vez assisti a uma cena fortíssima: um negro estava a remexer num caixote de lixo, chegou um polícia e disse-lhe: "Na tua terra nem disto tens." Uma coisa de vomitar. Mas logo a seguir o polícia ofereceu um cigarro ao negro... É um comportamento típico dos portugueses, tem a ver com a formação católica. As pessoas excitam-se muito, passado um bocado têm uma pena enorme das vítimas; odeiam os carrascos, logo a seguir têm pena deles. Já não são brandos costumes, é uma mescla de agressividade, porque a vida está difícil, e de resquícios de laços humanos. E há outra coisa que tem a ver com o filme: dos quinze países que se preparam para o euro dez ou onze têm governos socialistas mas o capitalismo nunca foi tão mesquinho. A miséria e a pobreza transformaram-se num espectáculo, servem-nos isso nas televisões... P. ? De certo modo "Tráfico" joga com essas mesmas armas para nos dar o negativo. Concorda? R. ? Fui buscar arquétipos, até para actores que fazem "cameos" de si próprios um bocado caricaturais. Coisas divertidas e leves onde, pelo meio, aparece qualquer coisa de socialmente mais sério. Exactamente como no Gil Vicente e nas farsas de que somos mestres. Há outra ideia que marcou este filme: a que diz que os pobres são incompetentes. Por isso, eu faço o contrário: as únicas personagens a quem dou o direito a ler são mesmo as da lixeira; tal como a única televisão que se vê está também na lixeira. E essas personagens aprendem a ler, aprendem a representar, e acabam por aprender também a fazer cinema, o cinema delas. Não queria acabar o filme de maneira eufórica, queria acabar com serenidade. P. ? Também está subjacente um discurso sobre o cinema. A cena em que se encena "Júlio César" é capital... R. ? Interessava-me Shakespeare pelo exercício sobre o fascínio e as intrigas do poder. E filmei-o como se de um lado estivesse Vittorio Cottafavi [mestre do "peplum", género popular do cinema histórico italiano dos anos 60] e de outro Godard. Há uma pergunta que faço: "O que é que hoje pode funcionar no cinema", coisa que me preocupa... O cinema-espectáculo teve o seu ponto alto num senhor chamado Adolf Hitler, secundado por um senhor chamado Goebbels, e o resto é conversa. E acho que o cinema-espectáculo contemporâneo, o americano, é feito nesse sistema. Já não há surpresas ao nível cinematográfico, só pode havê-las ao nível do espectáculo e dos efeitos. Gosto dos "Salteadores da Arca Perdida" do Spielberg: é banda desenhada. Mas o Spielberg do "O Resgate do Soldado Ryan" ofende-me, é uma coisa para salivar... O Spielberg até põe sangue na lente. "Tráfico" reflecte sobre isto: que se pode ainda fazer? Quando se divide o cinema entre "espectáculo comercial" e "arte cinematográfica" corre-se o risco de perder pessoas; o que pergunto é "o que posso eu fazer para ter pessoas sem violar os meus códigos morais e a minha fé na arte cinematográfica"? P. ? Nos seus filmes nunca há a linearidade de contar uma só história. Em "Três Palmeiras", por exemplo, essa utilização da montagem paralela multiplicava-se... R. ? Esse filme foi o esboço para "Tráfico"... Há cem anos atrás já houve experiências de cinema fantásticas com quatro histórias contadas ao mesmo tempo. Uma coisa que me irrita é tratarem as pessoas que vão ver filmes como um público homogéneo. A missão dum cineasta é observar, pensar e dar a ver o que pensou. Depois, as pessoas que escolham o que querem ver. O facto de o filme explodir para várias direcções sem perder a ideia central, que é a ideia de "tráfico", é o que eu mais gosto neste filme. As histórias do "Tráfico" contam-se por si, estão ligadas umas às outras por "raccords intelectuais". Não estou interessado em fazer filmes para as pessoas salivarem. P. ? Falando da perversidade do seu filme... Vendo "Tráfico" pensa-se numa sátira da telenovela. Há exemplos concretos. Ao acaso: Alexandra Lencastre, que aparece na capa da revista "Caras" com o marido e os filhos, está em "Tráfico" como amante do banqueiro. Passa por aqui algum espírito de guerrilha? R. ? Sim, é pegar nos actores e dizer que eles podem fazer outras coisas. Isto já vem desde "O Dia dos Meus Anos" (1992), o filme onde o meu cinema mudou, e que foi feito como resposta à telenovela. É possível fazer cinema não com os códigos mas com os elementos da telenovela. Os espectadores reconhecem de imediato as pessoas, têm um excesso desse reconhecimento e isso leva-as a pensar que tudo pode ser ridículo. Na televisão é o som que manda, se retirarmos o som tudo se transforma numa ridícula colecção de esgares; no cinema ainda manda a imagem. Com a personagem interpretada por Rita Blanco também fiz isso, a caricatura de uma figura conhecida da televisão. P. ? Apesar de tudo essa é uma das personagens com maior dignidade... R. ? Trato-a bem, sim, apesar da música "Stand By Your Man".... A música do filme interessa-me muito. É sempre diegética, tem sempre uma origem... Com muitas brincadeiras à volta dos códigos estabelecidos... sei lá, o "Begin the Beguine" na cena do Alcântara Café, a ilustrar o engate ao contrário: o machão português a ser pago para ir para a cama com a estrangeira. E os dois fados, "A Casa Portuguesa" e o "Não é Desgraça Ser Pobre", são os dois fados mais ridículos e que mais sustentaram o fascismo português; é claro que é desgraça ser pobre!
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