O Resgate do Soldado Ryan

É o melhor filme de Spielberg em muitos anos, digam os Oscares o que disserem. Não é perfeito, porque a ostensiva autoconsciência de Spielberg já atingiu um ponto de não retorno. Mas há muito que a "máquina de cinema" spielberguiana não carburava tão bem: "O Resgate do Soldado Ryan" nunca é tão bom como quando é "apenas" um filme de guerra. Curioso é que Spielberg, que com "1941" filmou a guerra enquanto "cartoon", chegue agora uma espécie de hiper-realismo quase jornalístico. Se o compararmos com outros filmes de guerra este é um combate travado em nome do filho - um dos temas de cabeceira do realizador. Uma obra complexa que gera reacções. É uma boa notícia: "O Resgate do Soldado Ryan" é o melhor filme de Steven Spielberg desde há muitos anos. Desde há muitos, mesmo... E é-o porque é um filme que, em grande parte (digamos oitenta por cento, contra vinte que fazem franzir os sobrolho com reservas) retoma o Spielberg dos anos setenta e de boa parte da década seguinte, um Spielberg que antes de se julgar político, filósofo ou poeta se contentava em ser aquilo que se lhe cola melhor: um cineasta incrivelmente talentoso, possuidor de uma extraordinária intuição, capaz de organizar imagens e sons em torno de um fôlego narrativo que, nos seus melhores momentos, pouco deve aos melhores cenas dos "clássicos" que o alimentaram e inspiraram. Fôlego narrativo e construções de "mise-en-scène" à beira do prodigioso não faltam a "O Resgate do Soldado Ryan", como há muito (repete-se) não se via na obra do cineasta. Se o filme fica a alguma distância de ser uma obra-prima (os tais vinte por cento de reservas) não é porque alguma coisa lhe falte mas porque algumas coisas estão a mais - em especial aquela autoconsciência que leva Spielberg a mostrar ardentemente que tem alguma coisa para "dizer", esse desejo obsessivo de ser "levado a sério" que, muito provavelmente, impede que alguma vez voltemos a ver o melhor Spielberg (o do "Tubarão", o dos "Encontros Imediatos", o dos "Indiana Jones", o de "Sempre", e o de mais alguns filmes, nenhum da década de noventa). Seja como for, há muito que Spielberg não era tão "série B" (uma série B insuflada e com muitos milhões de dólares à mistura, mas ainda assim, em termos de mecanismos internos, uma série B), e isso só pode ser saudado. Exaltar as virtudes de "O Resgate do Soldado Ryan" falando de série B é já desmentir um pouco o "hype" posto a circular pela poderosa campanha de "marketing" que, inevitavelmente, acompanha o lançamento do filme. Dizem esses slogans que haveria um lado pioneiro em "O Resgate do Soldado Ryan" e que nunca "o horror da guerra" teria sido mostrado como aqui. É falso: falso que o "horror da guerra" nunca tenha sido contundentemente mostrado e falso que "O Resgate do Soldado Ryan" seja um filme exclusivamente preocupado com isso; e mais, dir-se-ia que Spielberg, que é cinéfilo (obviamente, viu Ford, Fuller, Wellman, Mann) e tudo menos parvo, é o primeiro a ter consciência disso. Sobre o horror da guerra, e mesmo sobre o "horror da II guerra" (historicamente muito menos traumática para os americanos do que outras guerras do século) houve já dezenas de filmes, e alguns foram mesmo muito mais longe do que o presente filme de Spielberg. Para citar um, que vem insistentemente à memória durante o visionamento do filme, "The Big Red One"/"O Sargento da Força 1", rodado por Samuel Fuller em 1980. Genuína "série B", contém a mais poderosa sequência sobre este tema do horror e do absurdo da guerra: um combate num asilo de alienados entre soldados americanos, alemães e... os loucos quase vão apoderando das armas deixadas pelos mortos: em nenhum momento de "O Resgate do Soldado Ryan" Spielberg, apesar de muito maior exuberância, ousa figurar uma tal imagem. Mas esta parece, no entanto, uma falsa questão; a outra (se o filme de Spielberg teria como único tema o "horror") é que é importante. E aqui, é evidente que o realizador está plenamente consciente de que a guerra desperta sempre, pelo menos para o espectador, uma dupla e nada contraditória emoção: ou seja, é em simultâneo horrível e excitante, e esta última característica tem tendência para se sobrepor à primeira. Neste aspecto, apesar dos discursos politicamente correctos do próprio Spielberg, "O Resgate do Soldado Ryan" não é diferente: a excitação perversa provocada pela visão de homens em combate e pela iminiência da morte está cá toda, e não é crível que depois de o verem "os miúdos deixem de brincar às guerras", como pretendia, numa entrevista, Tom Hanks. Fuller, que esteve como soldado no desembarque na Normandia, não teve medo de filmar a guerra nesta dupla vertente; a Spielberg, que acaba por fazer o mesmo, faltou coragem para o assumir - e é se calhar por isso que, num filme pretensamente sobre o "absurdo", tudo aparece justificadíssimo e há sempre um sentido para a morte de cada homem: devolver um filho à mãe, objectivo absolutamente "spielberguiano" (reiterado pela quantidade de soldados que vemos morrer a chamar pela mãe). Há, portanto, uma causa nobre que sustenta o horror, mina o absurdo, camufla a excitação e, em última análise, "desculpabiliza" Spielberg não só por fazer um filme de guerra como, sobretudo, por em grande parte dele ser justamente como um "miúdo a brincar às guerras". E "O Resgate do Soldado Ryan" nunca é tão bom como quando Spielberg brinca às guerras. Depois de um prólogo de gosto duvidoso (e que volta no fim, como epílogo) em que vemos o soldado Ryan, no presente, visitando as sepulturas dos companheiros mortos em 1944, somos bruscamente transportados para uma barcaça cheia de soldados prestes a desembarcar em Omaha Beach, na manhã de 6 de Junho desse ano. Depois, e a partir do momento em que uma rajada de metralhadora varre a primeira fila de soldados ainda antes de eles saltarem para fora da embarcação, os dados estão lançados: a sequência é brutal, o espectador ainda não conhece as personagens e portanto ainda está sozinho, e sente-se tão desprotegido como os soldados perante uma morte que, vinda de cima (dos "bunkers" que acolitam as tropas alemãs no topo das falésias) parece chegar a todo o lado. Pequeno prodígio de "mise-en-scène", com a câmara a circular pelo campo de batalha como se quem a utilizasse fosse um repórter de guerra, não é "a melhor meia-hora da história do cinema" mas é certamente uma das melhores (se não a melhor) "meia-hora de guerra no cinema". Inteligentíssimo no tratamento do inimigo (reduzido a vultos ao longe e ao crepitar das metralhadoras), "O Resgate do Soldado Ryan" é durante todo este início uma fabulosa representação "em abstracto" da guerra - de toda a Guerra, seja ela a II ou não. Nalguns planos, mostrando os corpos estraçalhados e partidos ao meio, ou o do homem que leva na mão o braço decepado, ou o plano do soldado caído cheio de peixes mortos à volta, Spielberg fica mesmo perto (ele não pensou nisso, mas ficamos nós a pensar) de filmar a guerra com um delírio figurativo algures entre Bosch e os surrealistas. Em todo o caso, o brilho formal é assinalável, mas porventura suplantado pela derradeira sequência do filme, outra longuíssima sequência de combate. Aí, o que está em causa já não é o choque, e Spielberg pode investir na "dramatização": os pontos de vista multiplicam-se harmoniosamente ordenados, espaço e tempo tornam-se palpáveis - pode dizer-se que, então, a "máquina de cinema" spielberguiana se impõe a tudo; mas, quando funciona assim, temos pena é que não se imponha mais vezes.
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