Tarde Demais

Laurinda Alves chegou ao Montijo no dia a seguir à descoberta dos corpos sem vida de Joaquim Silva e José Fragateiro. Encontrou uma comunidade em "prostração interior". "Eles todos sabem, desde que nascem até que morrem, que um dia podem ficar no mar", conta. "É uma tragédia, é um drama", mas é também viver "com uma enorme dignidade".

"No dia seguinte eles estavam com aquele sofrimento todo dentro deles, mas na sua vida, a ter que ir reparar o barco, as redes. Têm que sobreviver, têm uma família para alimentar. Por isso têm que voltar para o mar. Eles estiveram ali à morte, viram os amigos morrer, e é para lá que voltam. Não há tempo de se fazerem à ideia. Vão para lá outra vez, para aquela água, para aquele sítio, com aquelas memórias. Quem fica também morre um bocado, mas de pé."

Laurinda Alves falou com os sobreviventes, e com Joselina Fragateiro e a filha, Fernanda, familiares de uma das vítimas. "A Fernanda tinha um sofrimento enorme com a morte do pai, mas, ao mesmo tempo, uma revolta, porque parece uma morte desnecessária... Podia ter-se salvo. Podia ter-se feito alguma coisa", conta a jornalista. E é por isso que considera a questão do helicóptero decisiva: "Não é para chatear as autoridades marítimas, mas isto espelha a nossa sociedade: é o princípio da cunha, do protagonismo, dos nomes que soam e dos que não soam."

Enquanto investigava o naufrágio, também tentou perceber o que era necessário para fazer descolar o helicóptero: "Falei para lá e, tal como aconteceu naquela noite, também fui remetida deste para aquele. Há uma burocracia subterrânea. Tem que se andar de Herodes para Pilatos."

Por tudo isso o filme de José Nascimento "podia ser uma melodrama". Mas, para Laurinda Alves, o cineasta "teve uma contenção de gestos, discursiva e narrativa". Não procurando "uma exibição de sofrimento, teve a noção exacta da intensidade do drama, de como ele era cinematográfico, mas sobretudo um testemunho histórico e social que nos faz imensa falta". Um testemunho que poderá funcionar como catarse, para uns, ou como alerta, para outros. Mas que não poderá ignorar o sofrimento.

"Lembro-me de ela [Joselina Fragateiro] dizer que, quando se salvaram dois pescadores [sem que se conhecessem as identidades], foi a correr com um cobertor", conta Laurinda Alves. "Tenho a imagem dela com um cobertor na mão... É como se tivesse ficado uma palavra que não foi dita. Ficou com aquela ideia do cobertor, de como queria tapar, aquecer, no fundo trazer de volta à vida [o marido]. Ela que estava num sofrimento profundo, atroz e irremediável. Era o amor da vida dela e ficou sem ele. Sem parte da razão da sua vida. E estava ali, sem vitimização, sem culpa, só com uma vontade incrível de ter podido fazer aquelas últimas coisas, pegar-lhe na mão quando estivesse a fechar os olhos. Quando lho entregaram, já não podia fazer nada. Ela tinha essa mágoa, especialmente por ele ter morrido de frio, que era exactamente o que mais o fazia sofrer. Ele morreu de frio, não morreu afogado."

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