Os Rapazes Não Choram

Depois dos tablóides e da atenção dos "gender studies", era natural que o cinema chegasse ao caso Brandon Teena/Teena Brandon. Houve um documentário, "The Brandon Teena Story" (1998), e agora chega "Os Rapazes não Choram", visão de uma cineasta, Kimberly Pierce (é a sua primeira obra), sobre a história de "um dos primeiros mártires transgender".

Pierce, lésbica, não esconde o seu investimento afectivo na história, como no travestismo e na transsexualidade em geral - por causa da sua experiência pessoal: cresceu como "maria rapaz" - e isso levou-a, no processo de pesquisa para o filme, a rodear-se de uma série de testemunhos de transsexuais e lésbicas.

Teríamos, pois, a caução de uma história trágica sobre "a diferença", na pior das hipóteses um docudrama sobre um "caso humano", defendido, com unhas e dentes, com uma entrada de leão no cinema: Hilary Swank, a intérprete de Brandon. Com uma carreira de série B atrás dela - a série "Beverly Hills 90210" ou o filme "The Next Karate Kid" -, Swank entrou um dia de rompante nos escritórios de Pierce, que viu aproximar-se uma pessoa "maravilhosamente andrógina, chapéu de cowboy, meias dentro das calças, maçã de adão, queixo quadrado, olhos de rapaz". Tinha tudo o que era necessário e, contou Pierce, ainda para mais "ria-se". A realizadora retribuiu-lhe o desafio: teria o papel, se a transformação fosse radical, "como Robert de Niro em O Touro Enraivecido", se vivesse durante algum tempo o seu dia-a-dia como homem. Assim ela fez.

Numa interpretação justamente aclamada, que já lhe valeu um Globo de Ouro e uma nomeação para os Óscares, Swank é, de facto, impressionante, e a solidez do seu "número" defende a causa de uma personagem. Mas, tal como Pierce percebeu, na sua pesquisa, que Brandon não cabia em nenhuma das categorias de estudo, que era irredutível ao gancho "confusão sexual" - a própria personagem, no filme, atira isso aos outros, para eles se agarrarem a qualquer coisa que ela não pode explicar e que eles não poderão perceber -, também o filme só é envolvente quando se desloca para zonas mais fluidas e indefiníveis.

Isso acontece quando "Os Rapazes não Choram" parece querer inscrever, sobre as regras mais estritas do "biopic", do "filme biográfico", rasgões de uma tempestade eléctrica, como se fossem alucinações sobre a ruralidade norte-americana. Pierce socorre-se de alguns exemplos - "Noivos Sangrentos", de Terrence Malick ou o cinema de Gus van Sant ou ainda o onirismo da obra de Michael Powell -, o que revela uma ambição desmedida em relação à "menoridade" do resultado em "Os Rapazes não Choram". Mas é aí que o filme se filia, no niilismo ou numa mitologia negra que foi cultivada pelo cinema americano independente dos anos 70... E a presença que corporiza essa tentação hipnótica acaba por não ser ela, Hilary Swank, mas ela, Chloe Sevigny, que interpreta Lana, a mulher amada por Brandon.

Com uma carreira inclassificável, de "Kids", de Larry Clark, ao recente "American Psycho", de Mary Harron, Sevigny vem-se destacando não só pelas suas escolhas arriscadas, algumas delas mesmo suicidárias (como "Gummo", de Harmony Korine, que veremos em Abril no ciclo Cinema dos Extremos do Mundo, na Culturgest), como por neles nunca abdicar de um ritmo próprio, uma dormência paralisante que imobiliza tudo o que está à volta. É o perverso desvio de "Os Homens não Choram": fazer-nos abdicar da presença central, o homem inteiro que existe numa mulher (Swank), por umas pálpebras viciosas que às vezes apagam o resto do filme.

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