Elogio do erro

Todos os brasileiros conhecem os nostálgicos versos de Gonçalves Crespo: "Na minha terra tem palmeiras / onde canta o sabiá / as aves que aqui cantam / não gorjeiam como lá". Poucos sabem, porém, que estes versos mentem: os sabiás não nidificam e nem sequer frequentam as palmeiras. Graças à beleza singela dos seus versos, o desacerto do poeta tornou-se no entanto mais verosímil do que a certeza dos ornitologistas. Pode ser que nunca ninguém tenha visto um sabiá pousado numa palmeira mas esta imagem improvável é hoje um símbolo do Brasil. Gosto destes erros mais belos do que a vida. Há-os em todos os campos da actividade humana. Alexander Fleming, por exemplo, descobriu a penicilina acidentalmente; terá sido também por acidente que os egípcios acharam o fermento e começaram a fabricar pão uns 20 séculos antes do nascimento de Jesus Cristo. Tocando a valsa da maneira errada, os luandenses criaram a rebita, um dos ritmos e danças mais originais de África. E não foi errando, errando muito e por largos dias, através de mares nunca dantes navegados, que Pedro Álvares Cabral aportou a terras de Vera Cruz? Os índios carregam até hoje, na designação genérica pela qual são conhecidos, o fardo desse singular equívoco: "Não nascemos na Índia", disse-me um, certa vez, revoltado, numa praia do Nordeste brasileiro, "não entendo por que os brancos insistem em nos chamar índios." O índio que me disse isto, curiosamente, era mulato e tinha olhos verdes. Era um índio muito brasileiro. "O artista é um erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito." A afirmação pertence ao poeta Manoel de Barros (é um verso do "Livro Sobre Nada"), que a vida inteira se esforçou por errar a língua com o fim de alcançar o súbito fulgor da novidade - o nunca dito: "O sentido normal das palavras não faz bem ao poema. / Há que se dar um gosto incasto aos termos. / Haver com eles um relacionamento voluptuoso. / Talvez corrompê-los até a quimera. / Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los. / Não existir mais rei nem regências. / Uma certa luxúria com a liberdade convém". Ou, como explicou num outro poema: "Ao poeta faz bem / Desexplicar - Tanto quanto o escurecer acende os vaga-lumes". O angolano Luandino Vieira inspirou-se no português errado do brasileiro Guimarães Rosa para criar uma obra que depois, sentado no outro lado do mapa cor-de-rosa, o moçambicano Mia Couto completou. Nunca mais ninguém, contudo, errou o português com tanto génio quanto Guimarães Rosa. A não ser as crianças. Errar é algo que todas as crianças fazem muito bem e sem esforço. As crianças erram com gosto; algumas vezes, inclusive, com extraordinário bom gosto. Já velho, ao final da sua longa vida, Picasso tinha uma grande ambição: pintar como uma criança - e quase conseguiu. Também a evolução natural se processa por erro. Algumas vezes a natureza erra (um gene a mais, um gene a menos), mas, ao contrário do habitual, esse erro revela-se uma vantagem e o sujeito errado transmite-o com sucesso à descendência. Foi desta forma que o símio chegou a Homem. Se fosse pessimista diria que, de disparate em disparate, o macaco desceu até se transformar em Hitler; como sou optimista prefiro pensar o contrário: de erro em erro, sim, mas cada qual mais afortunado, a macaca floriu em Catarina Furtado. Parece-me urgente, pois, reabilitar o erro. Em todas as cidades devia haver um monumento ao erro criativo. Lisboa, pensando bem, se não tem um monumento ao erro tem pelo menos um monumento errado. Não, não me refiro àquela coisa aterradora, em metal, que pretende recordar Francisco Sá Carneiro (um erro estético), e nem sequer à eufórica escultura de José de Guimarães, próximo ao Parque das Nações (um erro conceptual); estou a falar da estátua de Dom Pedro IV, no Rossio, que muita gente acredita representar na realidade o imperador Maximiliano, do México. Consta que a estátua, feita em Paris, estaria em trânsito por Lisboa quando guerrilheiros republicanos fuzilaram o fugaz imperador, após as tropas de Napoleão III - que foi quem lhe inventou o título - terem abandonado o México. Esquecidos em algum armazém de bronzes desvalidos, o infeliz cavaleiro e o seu cavalo foram (terão sido) finalmente comprados por um preço simbólico, alguns anos mais tarde, e Maximiliano, imperador de opereta, passou a representar o papel de uma das maiores figuras da história de Portugal e do Brasil. Formidável destino! Formidável erro do destino! Seria uma pena se tudo isto não passasse de vulgar lenda urbana. Ou seja, uma vez mais, o erro terá superado o acerto.Entre aqueles alunos (raros) capazes de errar com brilhantismo e os que nunca têm dúvidas e raramente se enganam, os professores deviam aplaudir os primeiros: "Parabéns, você errou! Errou muito bem!" Os últimos chegam por vezes a chefiar governos mas não acredito que consigam descobrir coisa alguma de útil para a humanidade. O erro humaniza; a dúvida, a inquietação, tirou o Homem das cavernas e há-de levá-lo às estrelas.

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