Jim del Mónaco

No princípio, e ainda a preto e branco, há as seis pranchas de "O 'souvenir'". É uma curta história que ocorre no regresso a África do europeu Jim del Mónaco, que se faz acompanhar pelo seu criado negro Tião e pela escultural Gina, uma loura um pouco fútil que não perde a menor oportunidade de se atirar ao explorador. Na melhor tradição colonial, o herói vai arbitrar um conflito de interesses entre a tribo dos bugalus e o antropólogo branco John Whitetorp, que se deixou enredar infantilmente num ritual de acasalamento com... o chefe tribal. Na fuga, o estudioso choca violentamente com Gina, e são ambos surpreendidos por Jim del Mónaco em contacto físico menos convencional.A beleza da jovem rapidamente faz empalidecer aos olhos do chefe africano a subtil aura de androginia que emanava do antropólogo. Assim fica resolvido o problema matricial da história sem praticamente qualquer intervenção do herói. Mas como uma desgraça nunca vem só, Gina torna-se o fruto da cobiça instintiva do africano, desígnio a que o nosso herói se opõe com determinação. A senda da guerra parece inevitável, mas Tião surge dos bastidores para propor a solução salvadora, sob a forma de uma boneca insuflável que ele trouxera como lembrança para um primo obscuro.Tudo acaba bem: o antropólogo salva a pele, o chefe tribal leva a mulher "ideal" - não fala, não chateia e pode fazer tudo com ela... - e Tião só tem que protestar a sua inocência perante as acusações de "taradice sexual" do seu "buana". Gina alimenta redobradas esperanças que Jim perceba que não há necessidade de introduzir bonecas insufláveis na sua vida enquanto ela estiver por perto. E quanto a Jim del Mónaco, portador de um conservadorismo ingénuo e infantil que terá oportunidade de manifestarem outras ocasiões, é o único a reagir com menos bonomia ao insólito desenlace da estória, desabafando de uma forma que não deixa margem de incerteza: "Vocês não passam todos de uns depravados, infraccionários da moral e dos bons costumes!".Deixando de lado o episódico atropelo linguístico do herói - infraccionários por infractores -, certamente imputável à perturbação irritada com que regressa ao acampamento com os companheiros a reboque, o que importa realçar é a maturidade gráfica desta primeira curta história da série, com a qual o desenhador Luís Louro e o argumentista Tozé Simões iniciam uma fecunda colaboração que durará quase uma década.Vistas em retrospectiva, as sucessivas histórias, que darão lugar à publicação de sete álbuns entre 1986 e 1994 (primeiro a preto e branco na Editorial Futura, e a partir de 1990 nas Edições ASA, a cores), permitem observar a rápida evolução gráfica de Louro. De um traço inicial anguloso e ainda "duro", o desenhador transita para uma expressão mais plástica e flexível, marcada pelos inequívocos sinais de uma riqueza de detalhes e de uma composição de personagens e cenários, ainda mal esboçados nos primeiros episódios. Depois, comprovar-se-á que os autores vão ganhando fôlego e confiança, atrevendo-se a ultrapassar a fronteira da história curta rumo a episódios mais longos e, por fim, a histórias de álbum inteiro, inclusivamente fora do "habitat" natural do herói (caso de "A grande ópera sideral").Durante esses anos de colaboração estreita, em que Louro se firmou como um dos mais produtivos e representativos criadores dos anos 80 - Tozé Simões afastou-se irreversivelmente da BD quando terminou a colaboração com Louro -, a mesma dupla estará ocupada com outros projectos, e em especial a série realista e fantástica Roques & Folques. No entanto, é inquestionável que a imagem de marca dos dois autores está sobretudo ligada ao pendor satírico e humorístico de Jim del Mónaco, construindo com pinceladas breves paródias que não poupam sequer os próprios protagonistas, como se nem autores nem heróis levassem demasiado a sério os respectivos papéis.Todas as características já apontadas à obra permitem estabelecer uma identificação "portuguesa" para os personagens - nada explícita na construção de Louro e Simões -, que se manifesta pelos caminhos de uma ironia com "laivos de erotismo" (como sublinha João Paiva Boléo) e um tudo nada brejeira, graças à qual a série obteve uma apreciável popularidade. Outras referências à BD, ao cinema e à literatura ajudam a compor um quadro coerente e substancial, pouco frequente no pequeno mundo dos quadradinhos portugueses. Tão substancial que levou o desenhador a encerrar, não se sabe se definitivamente, o desenvolvimento da série, para se aventurar em terrenos mais pessoais como autor integral das suas histórias, que dão pelo nome de "O Corvo", "Alice" ou "Coração de papel". Mas a verdade é que nada pode apagar o pequeno mundo que Louro e Simões inventaram juntos em Jim del Mónaco.

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