A paisagem que se vê daqui

Para o lugarejo que é a edição portuguesa de teatro, a publicação de quatro peças num volume de um autor como Brian Friel não pode deixar de ser um acontecimento.

Há na Irlanda, no condado de Donegal, que faz fronteira com o Ulster, uma aldeia chamada Ballybeg. Fica no Oeste da ilha, o que quer dizer que, de acordo com uma divisão mais antiga do que a que opõe o Norte ao Sul, pertence a um interior rural e pouco desenvolvido, contraponto da Belfast da costa Oriental. Mas Ballybeg só existe como espaço ficcional de muitas das peças de Brian Friel, o consagrado dramaturgo norte-irlandês agora publicado em Portugal.Para o lugarejo, quase tão imaginário como Ballybeg, que é a edição portuguesa de teatro, a publicação de quatro peças num volume de um autor como Friel não pode deixar de ser um acontecimento (como agora se diz, e apesar de o livro não ter a cinta correspondente). Trata-se do nº 2 dos Cadernos Dramat ("Cais Oeste", de Bernard-Marie Koltès, é o nº 1). Paulo Eduardo Carvalho traduziu os textos, deu-lhes contextos e problematizou-os em introduções autónomas.Esta edição apresenta-se como "homenagem" e "registo". A tradução integra-se numa experiência teatral e colectiva, a das quatro companhias (Malaposta, Escola de Mulheres, Ensemble e Assédio) que montaram as peças entre 1996 e 2000: trabalho simultaneamente literário e preocupado com o "aqui e agora" do espectáculo. Opção comum aos quatro textos portugueses é a recusa da adaptação: uma escolha (política) de conservar a alteridade do original, em vez de o teleportar, domesticando-o, para o Alentejo ou para os Açores. Decisão, aliás, a que a escrita de Friel convida, pela sua "localidade" militante, uma "Irishness" que pode ser também ouvida noutras latitudes.Esta selecção de quatro peças da extensa obra de Friel, que começou a escrever profissionalmente em 1960, dá ao leitor português pistas suficientes para adivinhar um percurso. Começando por uma ponta. Em "O Fantástico Francis Hardy, Curandeiro" (1979) conta-se uma história a três vozes. A mesma história, a de um charlatão - quase sempre bêbedo e capaz de um milagre ocasional - assassinado no regresso à terra natal (Ballybeg, claro). Frank, o curandeiro, representa o artista atormentado por dúvidas sobre as suas capacidades. A sua morte, que é um martírio (como o de Sebastian em "Bruscamente no Verão passado"), não é nem representada, nem sequer (como na peça de Tennessee Williams) narrada, mas sim repetidamente diferida pelos quatro monólogos que em sequência fazem o texto: os de Frank, a abrir e a fechar, o da sua mulher Grace e o de Teddy, o empresário. Entre estas falas (ou versões, ou pontos de vista) surgem inevitáveis inconsistências: o que aconteceu, por exemplo, em "Kinlochbervie, no Sutherland, no Norte da Escócia"? O leitor/espectador é convidado a participar num jogo de "descubra as diferenças", onde a fronteira entre facto e ficção é sucessivamente redesenhada pela(s) memória(s).Esta fronteira é também fundamental em "Molly Sweeney" (1994), uma das peças mais recentes de Friel. Nela se regressa à técnica de "O Fantástico Francis Hardy", o monólogo, para contar outro milagre, desta vez operado (literalmente) pela medicina e não pela fé. Trata-se de um caso clínico baseado num relato de Oliver Sacks (autor a que Peter Brook já recorreu para o espectáculo "L'Homme Qui"). Molly, cega quase desde que nasceu, assiste ao desmoronar do seu mundo perceptivo a partir do momento em que adquire parcialmente a visão. O que se põe em causa é a relação entre "ver" e "compreender", falseada pela própria linguagem - o adjectivo preferido de Frank, o marido, para qualificar a inteligência, é "brilhante". No final, Molly diz: "vivo agora num país de fronteira", onde as percepções deixaram de ser dignas de confiança, e a verdade e a mentira se confundem no mesmo caos.As outras duas peças incluídas neste livro decorrem em momentos precisos da História da Irlanda, separados por um século de diferença. "Danças a um deus pagão" (1990) passa-se durante os anos 30, já a Irlanda é um estado independente. É um regresso a casa, através da memória (através do teatro). Michael, o narrador, tinha na altura sete anos; mas não representa o rapaz que foi: limita-se a emprestar-lhe a voz, as outras personagens, quando se lhe dirigem, falam para o vazio. Nesta história da desagregação de uma família, composta por cinco tchekovianas irmãs, o passado volta a não ser transparente: "a atmosfera é mais real do que qualquer incidente e tudo é simultaneamente verdadeiro e ilusório", diz Michael. Tudo acontece "como numa dança" , e é ao som de um temperamental rádio chamado Marconi - um deus pagão, como o Lugh da festa das colheitas que está no título original, "Dancing at Lughnasa" - que, por uma vez na vida, as cinco irmãs dançam, em delírio, como bacantes.Se "Danças a um deus pagão" foi o maior sucesso de público de Friel (até já há um filme), "Traduções" (1980) é a peça que mais atraiu as atenções da crítica. Marca o início da actividade da Field Day Theatre Company, grupo fundado por Friel e pelo actor Stephen Rea (a que se juntou, entre outros, o "nobel" Seamus Heaney), com um projecto de intervenção artística e crítica, logo política, na Irlanda (do Norte e não só). A acção tem lugar em 1832: o exército inglês está a cartografar a Irlanda e a "normalizar" (leia-se "anglicizar") a toponímia. Entretanto, criam-se as escolas nacionais, onde a única língua é o inglês. É, portanto, uma peça sobre o colonialismo através da linguagem.Seria a mais tradicional deste conjunto de quatro peças (que, de uma forma ou de outra, subvertem, sem abolir, uma série de "regras" dramáticas), não fosse o contrato linguístico que propõe ao leitor/espectador: em "Translations", todas as personagens falam inglês, mas deve-se "fazer de conta" que algumas delas estão, "de facto", a falar gaélico; em "Traduções", se todos falam em bom português, é preciso acreditar que uns falam gaélico e outros inglês. Central é a personagem de Owen, o filho pródigo, que, na sua função de intermediário, não escapa ao duplo papel do tradutor e do traidor. A lembrar que não há traduções inocentes.A construção em torno de alguns núcleos muito condensados (mapa, cegueira, dança, cura, tradução); a aliança de imaginação e reflexão; a proximidade relativamente às personagens, nas suas fraquezas e pequenas glórias, recusando uma distância cínica, fazem de Brian Friel um dramaturgo a descobrir. Ballybeg fica já ao virar da esquina.

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