As asas do deserto

Né Ladeiras, Anamar e Pilar. A loba alada, Atena e a princesa. Personagens imaginárias que elas irão mostrar, hoje e 2ª feira, às 21h30, num voo a sobrevoar o Teatro Maria Matos, em Lisboa. O espectáculo chama-se "SM58" - um velho microfone amplificador de emoções.

"SM58" é um modelo de microfone antigo, daqueles maciços em metal luzidio, design futurista, a fazer lembrar um satélite artificial, que mais do que apanharem as "nuances" da voz captavam as subtilezas do sentimento. Né Ladeiras, Anamar e Pilar de Homem de Melo possuem subtilezas e mistério de sobra e o gosto pelo voo, seja encavalitadas num velho Sputnik ou nas asas de uma viagem astral. Foi nisso que Tiago Torres da Silva deve ter pensado ao decidir organizar um espectáculo também chamado "SM58" que pela primeira vez reunirá no mesmo palco estas três cantoras. O espectáculo, a realizar hoje e na segunda-feira no Teatro Maria Matos, em Lisboa, apresentará uma série de temas originais compostos pelas três e do lote de canções cantadas em diversas línguas, incluindo árabe, israelita, dialectos africanos e timorense, consta uma surpresa que elas nos pediram para não divulgar - pelo que não seremos nós a revelar que Né, Pilar e Anamar irão cantar logo à noite um tema dos Dead Can Dance. "SM58" terá ainda a particularidade de ser bastante mais do que um espectáculo convencional, estilo Os Três Tenores em versão feminina, socorrendo-se para tal de uma encenação que "obrigará" as três cantoras a afivelarem a máscara de diversas personagens. Vão cantar uma de cada vez, em duo e em trio mas seja qual for a combinação, as três estarão sempre presentes no palco. As luzes, os figurinos, as vozes e personalidades únicas e um acompanhamento intrumental discreto de percussões e guitarras, farão o resto.O PÚBLICO convidou-as para uma conversa mais ou menos alucinada e para uma sessão de fotografia sobre a qual muito haveria para contar e mostrar não fora o facto de apenas serem precisas quatro imagens e de querermos poupar aos nossos leitores a visão despudorada do escândalo. Sem malícia.Né, Anamar e Pilar são personalidades controversas e nem sempre a indústria soube tirar partido ou potencializar essa diferença que a música de qualquer delas acentua. Os discos que para já nos deixaram são elucidativos. Pilar, a mais recatada, gravou há uns bons anos um "Pecado Original", na boa tradição das cantautoras de guitarra à tiracolo. Anamar, embrenhada no esoterismo e no labirinto interior de si própria (do qual encontrou a saída há pouco tempo, segundo nos confessou), está agora mais forte do que quando gravou o incompreendido "M" (com produção e letras de Tiago Torres da Silva), álbum de seres e paisagens longínquos iluminados pela lua. Né tem sido a mais mediática e viajada das três e se a fase correspondente ao excelente e premiado "Traz os Montes" não se consolidou na posterior apropriação de temas de Fausto em "Todo este Céu", o tempo agora é de expectativa, até se ficar a conhecer o que resultou do seu trabalho com os Trans Global Underground, já que das horas passadas em estúdio com Hector Zazou (e John Cale, e Ryuichi Sakamoto e...) não guarda boas recordações, com a hipótese mais provável desse material não chegar a ver alguma vez a luz do dia. Mas tem na manga um disco que gravou no Brasil com Chico César e outro sobre a escritora Isabelle Eberheart. Né chegou ao PÚBLICO zangada (com tudo mas principalmente com o trânsito em Lisboa ao fim da tarde) mas acabou a dançar como a loba alada que acha que é. Também pedimos a Anamar e a Pilar que vestissem a pele que melhor lhes serve. Pilar é a princesa. Anamar escolheu Atena, deusa grega filha de Zeus. As três afirmam-se adeptas do voo. E voam. Ou, como sintetiza Tiago Torres da Silva: "Não é por acaso que o primeiro tema que vão cantar se chama 'Mergulho'. É como se entrassem no mar, furassem a terra e explodissem em fogo, sendo que o ar é a matéria comunicante entre elas e entre elas e o público". Só falta ligar o microfone SM58.

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