O programa da ingenuidade

Há uma riqueza de matérias pictóricas e de pequenas narrativas, uma alegria ingénua e uma seriedade arcaica reveladas nesta antologia de meio século de trabalho de Jean Dubuffet, exposta na Culturgest, em Lisboa. Cada uma destas obras pode libertar-nos de todos os lugares-comuns acumulados sobre o autor.

Jean Dubuffet nasceu com o século e morreu em 1985. Desejou tornar-se artista em Paris, a partir de 1918 por vontade própria e estabelecendo relação especial com nomes próximos ou integrantes directos do futuro movimento surrealista (Masson, Max Jacob, Antoni Artaud, por exemplo). Essas ligações revelavam já a sua vontade de romper com ordens estabelecidas. A do surrealismo seria em breve uma delas (com regras, rituais e obediências diversas). E aquando da sua primeira tardia individual, em 1944, tornou-se evidente que os seus caminhos eram de rejeição clara de tudo o que se tinha feito não apenas com o que se situava na directa herança cubista e herança geometrizante como dos lugares comuns das fontes do primitivismo surrealista. Até ao fim, embora em fases muito demarcadas, Dubuffet vai explorar o traço ingénuo, a riqueza imensa e sensual dos materiais, as cores da terra triste ou da alegria festiva (brancos, azuis, vermelhos da bandeira da Revolução), a incisão e a colagem de materiais não pictóricos; vai constituir galerias de retratos de amigos ou de personagens-tipo, cenas anónimas, mapas de memória (como os encontraremos em Joaquim Rodrigo), explosões finais de cor, abstractas e puramente musicais e visuais. O público tem de Dubuffet uma imagem incompleta ou distorcida. Podemos considerar a sua sorte semelhante à de um Miró, por exemplo. Discretos personagens, produtores de discursos contrário aos sistemas de consagração e reconhecimento da sociedade erudita e burguesa ambos acabam por produzir um conjunto de imagens de fácil tipificação e assimilação. E a sua utilização massiva, pelos agentes desse mesmo sistema (dos museus à arte pública, da comunicação publicitária ao gosto do público médio), acaba por perverter as suas intenções originais. Desde que estabeleceu nos anos 40 o caminho que lhe facultou aquilo que designou como "a Entrada", Dubuffet não mais parou de realizar pesquisas e novas experiências. As pinturas do início de 40 instalam-se contra a erudição da Escola de Paris com a apresentação de uma visão terna, ingénua e esperançosa do mundo - que então se encontrava envolvido em guerra - ou violentando a hipocrisia da moral burguesa. "Le petit baiser" (1943) mostra, num desenho infantil de traço grosso sobre um fundo espesso, um casal beijando-se no rosto. E "Desnudus" (1945) apresenta a nudez masculina num propósito exibicionista de imagem primitiva com as suas notações gráficas dos valores volumétricos do corpo e a afirmação excessiva do sexo.Mas, mais do que procurar a estranheza ou a peculiaridade, Dubuffet procura o vulgar e a normalidade, procura reproduzir não apenas os temas mas o próprio modo como as narrativas populares urbanos podem construir-se no espaço da representação visual - ele defendia aliás o estatuto de linguagem e pensamento para a arte. Pessoas vulgares, transeuntes das cidades, aquilo a que chama "personagens", povoam as pinturas, desenhos e colagens, onde aparecem rodeados de "cloisonés" (contornos delineados a negro). Partindo de pequenas superfícies e cenas simples (às vezes meros retratos individuais) as imagens tendem, em diferentes séries dos anos 40 a 80, a expandir-se até atingirem a dimensão da pintura mural - numa escala e complexificação de relações entre personagens, objectos e espaços que é manifestação da influência permanente da sua amizade juvenil por Fernand Léger. Ao mesmo tempo - e sem contradição, porque a normalidade procurada é a não erudita e não intelectual - Dubuffet empenha-se no entendimento da marginalidade do comportamento humano: a sua amizade por Céline e por Artaud dá-nos uma dupla dimensão dessa procura que o leva à redacção de inúmeros manifestos contra a cultura estabelecida e em favor do que designou por Arte Bruta. A sua defesa da razão não cartesiana é um atentado dentro do sistema francês que exactamente se apoia nessa mesma lógica. Mas a sua obra pictórica acabará por ser absorvida pela vocação omnívora do sistema. No entanto parece impossível anular os seus valores de ruptura - impossível nos escritos e só possível na pintura devido à incultura visual generalizada dos espectadores. De facto, se forem convenientemente vistas, as obras de Dubuffet desejam negar não apenas a história moderna da arte francesa como tudo o resto que nos liga à discursividade lógica ocidental, pretendem abrir pequenos regatos que vão erodindo os solos, analisam o real visual e apresentam-no em pequenas formas (des)articuláveis - é interessante o interesse que José Escada, emigrado na Paris nos anos 60 no seio do grupo português "KWY", mostrou por Dubuffet -, procuram o avesso do quotidiano e tornam o quotidiano celebrável, aceitam a expressão da loucura e da ingenuidade e fazem-nas ocupar o poder libertador dos discursos. É um caminho de negação, embora programado.

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