Na pista do jazz

Ludovic Navarre vem a Lisboa apresentar o álbum "Tourist" do seu projecto St Germain. Na mala carrega materiais como o jazz, o house ou os blues. Mas o que conta é a definição de atmosferas tranquilas, charmosas, elegantes. No bairro de St Germain En-Laye, classicismo rima com modernidade.

"Em França, os jovens fundam pequenas empresas de música electrónica, criam empregos e exportam o 'savoir-faire' tricolor para todo o mundo". Começava assim um artigo de fundo da revista francesa Les Inrockuptibles, sobre a nova vaga da música francesa dançante, publicado em Setembro do ano passado. Depois dos Air, Daft Punk, Cassius ou Dimitri From Paris terem legitimado a nova música gaulesa além-fronteiras, parece ter chegado o momento dos próprios franceses se orgulharem dos seus. E quando é a revista Les Inrockuptibles, que durante anos passou ao lado do fenómeno, a fazê-lo sabemos que as pazes entre músicos, imprensa e público foram feitas. Mas nem sempre foi assim. Durante anos a maior parte das figuras do "french touch" queixava-se da indiferença da imprensa e do público no seu próprio país. Foi necessário a demais imprensa europeia ter começado a olhar para aquilo que vinha de Paris e arredores com interesse para os franceses despertarem para um verdadeiro filão de novos projectos que investia de forma segura em novas sonoridades. Inicialmente chegou a pensar-se que tudo não passaria de um fenómeno passageiro, mas quando a definição de um imaginário - sonoro e visual - de forte pendor lúdico se sedimentou, percebeu-se que a invasão francesa não iria abrandar. Como o lançamento sucessivos de discos de Kid Loco, DJ Cam, Etienne Dé Crecy, I:Cube, Joakim Lone Octet, Bang Bang, Rinôçérôse, Frédéric Galliano e muitos outros veio a confirmar. E tudo começou no Verão de 1995 com um álbum intitulado "Boulevard". A partir desse verão quente a música francesa nunca mais foi a mesma. Poucos olham para ele hoje assim, mas foi o álbum de estreia de Ludovic Navarre - a figura que se esconde por detrás da designação St Germain - que originou o crescendo de curiosidade em torno da música dançante de origem gaulesa. Nesse disco, as sonoridades cálidas do deep-house dissolviam-se por entre finas camadas de jazz, blues e dub, mas era o sugestivo apelo clássico intemporal que fascinava em temas como "Deep in it", "Thank u mum (4 everything you did)", "Sentimental mood" ou "Easy to remember". Mas "Boulevard" não nasceu por acaso. A definição de uma sonoridade própria vinha a ser trabalhada por Ludo - como é conhecido no seio de amigos e cúmplices - desde 1991. Na primeira metade dos anos 90 Ludovic Navarre produziu a maior parte dos discos da editora de Eric Morand e Laurent Garnier, a F Communications. Ao mesmo tempo desenvolveu uma série de projectos paralelos que se movimentavam por diversas vertentes da música de dança como o house, o garage, o tecno ou o ambientalismo. Tinham nomes como Modus Vivendi, Deepside (com o qual lançou um magnífico EP homónimo), DS, Nuages (projecto desenvolvido com o parceiro de editora Shazz), Deep Contest (com DJ Deep) ou Soufflé. A utilização da designação St Germain (originalmente St Germain En-Laye) acontece pela primeira vez em 1993, quando edita o EP "Mezzotinto", mas é em 1995, quando é lançada a série de EPs "Boulevard" (que darão origem ao álbum do mesmo nome), que as atenções começam a recair sobre si. O americano Larry Heard, uma das figuras pioneiras mais conhecidas da música house, definiu "Boulevard" como "uma combinação daquilo que eu próprio fiz, misturado com Manuel Göttsching e Brian Eno". Tinha razão. Mas podia ter ido mais longe. Na música do jovem músico e produtor francês combinava-se o que de melhor tinham para oferecer o tecno original de Detroit, o house de Chicago e Nova Iorque, o jazz de Miles Davis, os blues de Lightin' Hopkins e o dub de Lee Perry. Tudo suavizado pelo charme clássico de Paris e por um jogo de contrastes perfeito entre técnicas electrónicas e instrumentação convencional. Foram vendidas 200 mil cópias de "Boulevard" em todo o mundo. O disco tornou-se num clássico de culto, foi eleito "álbum do ano" por diversas publicações europeias e o tímido e taciturno Ludo remeteu-se ao silêncio. Incompatibilidades com a sua casa de sempre, a F Communications, foram atrasando a saída do tão desejado segundo álbum, acabando o músico de Paris por ingressar na prestigiada editora de jazz, Blue Note, depois de um demorado processo de desvinculação. É neste contexto que nasce "Tourist". Mais um disco que deve tanto às linguagens mais sofisticadas de música de dança como ao legado clássico do jazz. Na verdade, "Tourist" não acrescenta nada ao que já se conhecia do universo de St Germain. Mas também não é uma simples réplica. É o típico disco que se inspira nos mesmos princípios que o seu antecessor - lá estão os padrões rítmicos do house, os elementos do jazz, as aproximações aos blues e dub e as atmosferas melancólicas - mas que consegue seduzir mesmo assim. A concepção impressionista, a rigorosa definição sonora, os enlevos orquestrais e a luz interior que emana de temas como "So flute", "Latin note", "Ponts des arts" ou "La goute d'or" não mentem sobre o génio de Ludo e cúmplices. Não chegam para cumprir totalmente as enormes expectativas geradas à sua volta, mas a harmonia "cool" do colectivo supera eventuais fragilidades. Como é que uma música que recupera a linguagem colectiva do jazz resulta ao vivo é algo que se vai ver na próxima terça-feira, mas não custa acreditar que os resultados serão interessantes. Ludovic Navarre funciona como mestre de cerimónias, ocupando-se de computadores e 'samplers', enquanto à sua volta Didier Davidas (teclas), Pascal Ohse (trompete), Edouard Labor (saxofone e flauta), Edmundo Carneiro (percussões) e Junior Bezerra (percussões) imprimem a necessária dinâmica a temas que tanto resultam na pista de dança como nas caves escuras dos clubes de jazz.

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