Ok, agora deixem-nos em paz

É o regresso musical mais aguardado dos últimos tempos. "Kid A", o novo álbum dos Radiohead, chega às lojas a 2 de Outubro. Sim, o sucessor de "Ok Computer" é tão inesperado quanto brilhante: o Sons ouviu o disco em primeira mão e sobreviveu para contar.

Aguardado como uma profecia rock pré-milénio, "Kid A", o quarto álbum dos britânicos Radiohead é lançado no próximo dia 2 de Outubro, suplantando em ansiedade, conjecturas e efervescência mediática os anunciados regressos de Björk e U2. Não é para menos: nos três anos que se seguiram a "Ok Computer", o álbum mais decisivo da banda de Oxford - e, para muitos, do rock actual "tout court", proclamado, ao mesmo tempo, como coveiro e salvador messiânico das fórmulas esgotadas a que aquele tinha chegado -, muito se tem especulado sobre a capacidade de os Radiohead se ultrapassarem a si mesmos. Já tinha sido assim em 1993, curiosamente, quando o tema "Creep" irrompeu nas estações de rádio e nas pistas de dança com inesperadas consequências, fazendo disparar as vendas de "Pablo Honey", o disco de estreia. A crítica achou que sim, senhor, a canção era um respeitável e delico-doce hino pop de contornos sombrios, mas temia que os Radiohead figurassem para sempre nas notas de rodapé das enciclopédias musicais como uma "one hit band". Mais recentemente, uma revista americana propunha, com irónico cinismo, uma retrospectiva da carreira dos Radiohead por alturas do 25º aniversário de "Ok Computer", traçando uma hipotética cronologia que se limitava a infindáveis reedições e actos revivalistas do terceiro álbum do grupo...Outro sintoma do histerismo e da aura de mistério que tem envolvido a produção do último trabalho dos Radiohead é a capa da revista "Q" de Outubro, com o anúncio de que a entrevista (de sete páginas) aos cinco elementos do grupo é o acontecimento do ano, terminando com a ameaça digna de um "thriller" de Hollywood: "You won't believe what they've done" ("Não vão acreditar no que eles fizeram").O está em causa com "Kid A" é simplesmente o título de maior banda rock... do mundo. Foi esse o reconhecimento e, em simultâneo, a condenação trazidos por "Ok Computer". Na sua inconstância sonora, atravessada por vários estados de derrapagem e digestão de guitarras, e servida pelo desencantamento das letras e da voz de Thom Yorke, "Ok Computer" marcou o final da década de 90 como nenhum outro álbum e a carreira da banda, que até então não tinha qualquer marca que a distinguisse a não ser a personalidade desconcertante do seu líder, Thom Yorke, um rapaz de aspecto franzino com uma pequena deficiência no olho esquerdo, quase sempre meio fechado. Se graças a "The Bends" (1996), os Radiohead já eram grandes na Irlanda (!), o álbum de 1997 estende a rendição à escala planetária.Depois de uma megadigressão mundial, os rapazes fecharam-se no estúdio e a especulação começou, com a imprensa britânica balançando entre a desconfiança e o alívio - tranquilizando o mundo sobre o estado emocional e produtivo da banda com frases do género "Thom Yorke está bem-disposto" ou "A banda está a trabalhar no estúdio e sente-se em casa". Concluído há quatro meses e meio, "Kid A" quase custou a sobrevivência da banda em Fevereiro passado, devido a desentendimentos sobre o alinhamento do álbum, mas em Abril chegou-se a um consenso sobre as dez faixas que figuram no sucessor do "Ok Computer" - desconfia-se que o "consenso" não é mais do que a vitória de Thom Yorke sobre as vontades dos restantes membros, até porque todos assumem que o último registo é feito à imagem e semelhança do líder. "Nós funcionamos como as Nações Unidas", brinca Yorke, "e eu sou a América." Talvez por isso, muitos (incluindo a própria distribuidora discográfica em Portugal, a EMI) façam questão de salientar que "Kid A" foi composto num período conturbado na vida de Yorke, passando um atestado de loucura ao vocalista como garante da genialidade do álbum. Tornou-se evidente, para a opinião generalizada, que "Kid A" tem de ir além das proezas de "Ok Computer" e buscar novas soluções para a música rock, aquilo que Thom Yorke tem resumido como "um monte de disparates", acrescentando que só quer que o deixem em paz. Mas é seguro que, apesar do insistente "low profile" de Yorke e companhia, a banda esforçou-se por corresponder às expectativas geradas, ainda que a inexistência de singles e "videoclips", o carácter minimalista do disco, a redução das actuações ao vivo e a restrição das entrevistas possam fazer pensar o contrário. Com 50 minutos de duração, a audição de "Kid A" garante, pelo menos, uma coisa: estranhamento. Já se sabe que o álbum assinala uma viragem electrónica - Yorke comprou todo o catálogo da editora Warp e levou discos de Aphex Twin e Autrechre para o estúdio, ditando o caminho a seguir, para espanto dos outros elementos, como Ed O'Brien, que planeara o quarto álbum como um conjunto de melodias lo-fi, de três minutos, dominadas pelas guitarras - e que a lógica seguida em "Ok Computer" - os rasgos de guitarras e as rupturas operadas pela dialéctica de sons arrojados e calmos - foi posta de lado. O quase aniquilamento das guitarras e a soberania dos samples e arranjos feitos por computador faz com que muitas faixas não contenham uma única nota tocada por alguns elementos, mas, afinal, "Kid A" é tudo excepto um álbum convencional. Foi produzido sem restrições temporais (há temas que ocuparam a banda durante mais de um ano e nem sequer aparecem no álbum), com pouco material pré-escrito e com uma dose reforçada de indecisão e espanto. É também isso que os Radiohead podem esperar da recepção do seu álbum, que, entre rasgados elogios da imprensa, tem baralhado as convicções de alguns ouvintes, desapontados com a inexistência de uma grande canção no disco ("Ok Computer", se bem se lembram, estava repleto delas). Apesar da grande amplitude de sons que assaltam cada faixa de todos os lados e da insurreição atonal em que a maior parte termina, o álbum funciona como um "continuum" melódico que varia entre a linha rítmica do baixo em "The National Anthem", a ecoar um estranho "rendez-vous" entre, digamos, os Stone Roses, Happy Mondays e Morphine, e a assunção do beat em "Idioteque" (ver caixa). "Everything in its right place", canta Thom Yorke na faixa de abertura e ninguém parece querer contradizê-lo, mesmo que o tom atmosférico e minimal do disco se assemelhe a uma longa nota de suicídio comercial. Entretanto, os Radiohead já fizeram saber que não será preciso esperar tanto tempo pelo sucessor de "Kid A". O quinto álbum do grupo deverá surgir antes do Verão do próximo ano e incluirá alguns dos 14 temas que ficaram de fora.

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