O funk depois do punk

Os 23 Skidoo estão de volta e os Shriekback também. Seguem-se reedições dos SPK e uma retrospectiva desta geração de avant-funk, compilada por Andrew Weatherall. Não é nenhum surto de nostalgia, até porque não há muitos êxitos para recordar. Mas a conclusão a que também se chega é que a música de dança nunca foi tão experimental e subversiva como há 20 anos atrás.

Folheia-se qualquer uma das muitas histórias da música de dança editadas nos últimos cinco anos. Como antecedentes directos do fenómeno rave e de todas vagas dançantes que se lhe seguiram referem-se, invariavelmente, a house de Chicago e o tecno de Detroit, dominantes em meados dos anos 80. Algumas histórias remontam até às eras do funk e do disco sound, na década precedente. Mas entre meados e finais dos anos 70 e meados e finais dos anos 80 é como se nada se tivesse passado e, de facto, não aconteceu grande coisa na música de dança americana. O que se esquece por desconhecimento, ou por marginalização voluntária, é toda uma geração de bandas e projectos, na maior parte ingleses, que surgiram no período pós-punk dos finais dos anos 70, início dos 80. Esta omissão ou exclusão terá alguma razão de ser: é que, apesar de se centrar em ritmos de dança, e em particular no legado funk, essa geração começou por produzir música imprópria para consumo em discotecas. O objectivo não era divertir, mas inovar e protestar, combinando dois grandes vectores: a ideologia subversiva do punk e as estratégias de choque da corrente industrial e electrónica.Daí resultou uma revisão radical da música negra de dança, forçosamente tão efémera quanto o motim punk. Por isso o avant-funk - ou funk noir, ou ainda metal dance - foi enterrado e esquecido como um episódio marginal, dissipando ou dissimulando a enorme influência que teve na posterioridade. O que não impede que muitos dos sons actuais, mais prestigiados e mesmo populares, tenham a sua raiz no avant-funk e isso é desde logo evidente acompanhando a evolução musical de alguma cidades inglesas.Em Bristol, a eclosão do trip hop teve por antecedente directo a saga do Pop Group (foi o seu líder Mark Stewart quem, nomeadamente, apadrinhou Tricky). Em Sheffield o "tecno cerebral" do selo Warp derivou do funk industrial protagonizado por bandas como os Cabaret Voltaire (o primeiro disco da Warp foi de Richard H. Kirk). E em Manchester o híbrido indie dance foi largamente inspirado no carácter pioneiro dos A Certain Ratio (o seu regresso em 1995 aconteceu com um álbum de remisturas assinadas por projectos como os 808 State e os Electronic). Para além disso, toda a vaga de tecno industrial que dominou os tops americanos nos anos 90 com bandas como Nine Inch Nails e Marilyn Manson é impensável sem a eclosão do ruído dançante que animou as franjas sónicas inglesas nos inícios da década precedente. Agora os seus heróis esquecidos estão de volta e/ou a ser reeditados. Talvez porque a música de dança passa por um novo período de experimentação, talvez porque a indústria revivalista precisa de uma reciclagem constante. Seja como for, o avant-funk está de volta e vale a pena recordar os seus principais expoentes. Foram uma das bandas cruciais do período pós-punk. Anteciparam em mais de uma década a vaga indie dance e o trance; apesar de um arranque promissor, nunca tiveram grande sucesso. Os A Certain Ratio emergiram em Manchester, em 1978, e um escasso ano depois foram contratados pela Factory, onde se estrearam, editando apenas em cassete uma revisão radical do legado funk, brutalmente primitivista e sinistra. O segundo single, "Shack up", versão de um clássico de northern soul, trouxe-lhes um êxito inesperado no top americano que não teve porém continuidade em "To Each" e "Sextet", álbuns que definiram um som de avant-funk fantasmagórico, aplicando estratégias de alienação a uma mistura de música negra de dança, ritmos brasileiros e jazz moderno. Frustrados com a falta de visibilidade, assinaram contrato com a major A&M em meados dos anos 80, enveredando por um som mais dançável, mas o compromisso não produziu os efeitos desejados. Quase não se deu por eles na primeira metade da década de 90, até que em 1995 a Creation comprou e reeditou o seu fundo de catálogo. O seu último registo, "Change the Station", data de 1997. Título-chave: o nome do grupo, ao contrário do boato posto a circular, não vem de uma citação de Hitler, mas de um verso de "Taking Tiger Mountain..." de Brian Eno. Álbum de referência: "Sextet", Factory, 1982O que eles diziam (num folheto de de promoção de 1996): "Se tocássemos agora a música que fazíamos em 1979/80, nunca teríamos conseguido ser contratados por uma editora." Episódio memorável: em 1980, um A&R da Island convidou os A Certain Ratio para gravarem com Grace Jones "House in Motion" dos Talking Heads. Quando Chris Blackwell, patrão da Islands, descobriu, ficou furioso, despediu o A&R e arquivou as lendárias gravações, que nunca viram a luz do dia. Descendência: 808 State, Electronic, Happy Mondays, Primal Scream, The Other TwoSão uma das bandas mais influentes das duas últimas décadas, podendo reclamar a paternidade de estilos tão diferentes quanto o tecno industrial americano e a electrónica abstracta da editora inglesa Warp. De facto, foram sempre uma banda em processo de auto-reinvenção. Influenciados pelo Dada, Burroughs, Duchamp e Man Ray, começaram a experimentar com técnicas de cut up e de colagem em 1974, quando eram um trio formado por Richard H. Kirk, Stephen Mallinger e Chris Watson. Se a banda de Sheffield não era tão politicamente militante quanto outras no mesmo comprimento de onda, a obsessão com o triângulo religião-sexo-morte tornou-se, todavia, numa das suas imagens de marca. "Mix Up", o primeiro álbum, de 1979, era uma peça de distúrbios industriais, mas dois anos depois Watson saiu e o duo sobrevivente enveredou por uma linha mais dançante. Os singles "Sensoria" e "James Brown" - centrados em ritmos repetitivos e viciantes - ascenderam aos tops e rivalizaram com os New Order nas preferências das falanges "indie". Esse sucesso valeu-lhes um contrato com uma major, ocasião que aproveitaram para voar para Chicago e gravar "Groovy, Laidback & Nasty" (90) com Marshall Jefferson, um dos pontífices da house. Kirk e Mallinger continuaram a lançar discos em nome próprio, reaparecendo efemeramente em conjunto em 1993; depois disso, o segundo mudou-se para a Austrália, enquanto o primeiro continuou a editar em Inglaterra a um ritmo alucinante, percorrendo géneros que vão da house à música ambiental. Título-chave: "Gasolina nos teus olhos", nome do vídeo de 1985Álbum de referência: "Crackdown", Some Bizarre 1983O que eles diziam (em "Tape Delay", 1987): "O que é importante na repetição é funcionar como um fio condutor em torno do qual todas as coisas se organizam. Ao mesmo tempo cria um elemento hipnótico que consegue agarrar as pessoas." Episódio memorável: no primeiro concerto, a 13 de Maio de 1975, na Universidade de Sheffield, Reino Unido, actuaram perante uma plateia disco sound, empregando engenhos como loops da batida de um martelo. O espectáculo acabou quando o público invadiu o palco para bater na banda estreante. Descendência: Aphex Twin, Autechre, Bandalu, Black Dog, Ministry, Nine Inch Nails, ScannerEm 1978 surgiu em Sheffield uma formação chamada Studs que incluía os três Cabaret Voltaire, Ian Craig Marsh e Martyn Ware (dois futuros Human League), Glen Gregory (depois Heaven 17) e ainda Adi Newton. Marsh e Ware formaram depois os The Future com Newton, mas acabaram por o abandonar, porque, ao contrário deste, só queriam empregar engenhos electrónicos. Foi aí, em 1980, que Newton formou os ClockDVA com o seu amigo Stephen "Judd" Turner. Os primeiros registos, lançados pelos Throbbling Gristle, eram pura desbunda de ruído sobre ritmos funk. No final de 1981, no entanto, Judd morreu e Newton quis distanciar-se do gueto da cena industrial, recrutando um saxofonista e assinado contrato com a major Polydor. Daí resultou "Advantage", álbum que simbolizou a sua transição para os ritmos de dança à mistura com fitas gravadas e feedback. Depois disso Newton refez ciclicamente os DVA, fazendo-os oscilar entre a anarquia jazzística e a electrónica, sempre com teorias esotéricas e profetismos catastróficos à mistura. Promete reeditar a maior parte da sua discografia ainda este ano. Título-chave: o nome da banda vem da linguagem Nadsat de "A Clockwork Orange" de Anthony Burgess (que deu origem ao filme "Laranja Mecânica"). "DVA" quer dizer dois em russo e tem uma interpretação cabalística; o elemento "clock" (relógio) foi adoptado como símbolo surrealista. Álbum de referência: "Advantage", Wax Trax! 1983O que eles diziam (na contracapa de "Buried Dreams", 1989): "Os Clock DVA são a nova geração que se prepara para uma guerra áudio digital. O som é uma arma, um instrumento sono-nu-clear."Episódio memorável: Ali Newton, o único elemento constante ao longo de duas décadas de ClockDVA, incompatibilizou-se com quase toda a gente com quem trabalhou. Últimas notícias dão-no em litígio com a editora checa Next Era que acaba de reeditar "Buried Dreams" (90) com o consentimento de outros dois ex-elementos da banda, Paul Browse e Dean Dennis. Descendência: KMFDM, Shamen, Skinny Puppy, Young GodsO quinteto formado em Bristol em 1978 era tudo menos o que a inofensiva designação Pop Group sugeria. Na verdade, era um grupo de jovens formados nas escolas de motim do punk, mas também nas da militância de choque do situacionismo e da guerrilha de extrema-esquerda. Julgando que o rock se tornara patético, ou que o punk já o tinha suficientemente desancado, procuraram fazer o mesmo com o legado da música negra, desde a soul e o funk até ao jazz, que reconduziram a uma amálgama deflagratória e caótica. Lançaram apenas dois álbuns e uma compilação de material disperso, posto o que se separaram para integrarem outros projectos. Mark Stewart criou de seguida os New Age Steppers, que extrapolaram a experiência dos Pop Group para o terreno dub, formou a editora On-U Sound com o produtor Adrian Sherwood e seguiu carreira a solo na companhia dos Maffia, a banda residente da editora de rap Sugar Hill e que depois haveria de dar origem aos Little Axe. Gareth Singer, por seu lado, formou os Rip Rig & Panic, a primeira banda de Neneh Cherry, que editaram três álbuns de combinações surreais de reggae, afro-pop e free-jazz. Simon Underwood deu origem aos Pig Bag, que teve um dos maiores êxitos de 1982 com o funkérrimo "Papa's got a brand new Pigbag", que ainda hoje se ouve em supermercados à escala planetária. Das cinzas dos Pop Group ainda nasceram os Maximum Joy, que não duraram mais de uma estação. Dois anos atrás a Rough Trade lançou uma compilação de êxitos que nunca chegaram a sê-lo dos Pop Group com a designação de "We Are All Prostitutes". Título-chave: "Por quanto tempo vamos ainda tolerar genocídios?", título do álbum de 1980Álbum de referência: "The Pop Group", Radar 1979O que eles diziam (Mark Stewart, "New Musical Express", 30 de Junho de 1979): "As pessoas não precisam de dinheiro. São condicionadas para comprar coisas de que não precisam... coisas que são símbolos de posição social, sobretudo os discos. As pessoas deviam voltar a fazer a sua própria música." Episódio memorável: os Pop Group lançaram os dois primeiros álbuns na Radar, subsidiária da major Warner. Mas, como eram anticorporações, não assinaram contrato, enquanto gastavam para cima de 40 mil libras em avanços da editora. Quando esta percebeu que a banda não vendia, despediu-a sem poder reclamar a dívida, visto que não havia nada escrito.Descendência: Fugazi, Fun-da-Mental, Massive Attack, Rage Against the Machine, Space, TrickyOs Shriekback não conheceram o sucesso pop dos Soft Cell e dos Heaven 17, nem o prestígio vanguardistas dos Cabaret Voltaire e dos Test Dept. Foi, no entanto, a ponte entre esses dois extremos que tentou fazer a banda formada em 1982 por David Allen (ex-Gang of 4), Carl Marsh (ex-Out of the Blue 6) e Barry Andrews (ex-XTC), o único elemento que persistiu até ao seu desaparecimento, em 1988. Desde o início produziram uma mistura singular de rock e de música de dança, a meio caminho entre o funk mutante e o experimentalismo industrial, que antecipou os modelos híbridos dominantes na década seguinte. O trio original voltou a juntar-se para gravar em 1994 e de novo este ano, em que já lançaram "Naked Apes & Pond Life". Título-chave: "A minha espinha (é a linha do baixo)", nome de um single de 1982Álbum de referência: "Oil & Gold", Arista, 1985O que eles diziam (folheto de promoção de 1994): "Sempre pirateámos todos os géneros de música de dança que viessem à rede e depois reinterpretámo-los à nossa maneira inimitável." Episódio memorável: em 1993, rodaram um vídeo nas Docklands, em Londres, em que a ideia era filmarem o cenário de dinossauros industriais à luz do dia. Mas o electricista levou tanto tempo a ligar os cabos que, quando acabou, era de noite e a banda parece estar a tocar na berma de uma auto-estrada.Descendência: Underworld, The Creatures, Wolfgang PressBanda nascida num hospital psiquiátrico alemão em 1978, do encontro de Revell, enfermeiro, e Neil, paciente, os SPK começaram por alinhar na facção industrial mais niilista. Entretanto Neil saiu de cena e entraram a vocalista Sinan e o percussionista Derek Thompson, devendo-se ao último a mudança que o grupo iniciou em 1983 das percussões industriais para os ritmos programados. A sua música tornou-se dançante, mas mesmo assim castigadora, assentando em boa parte em colagens grotescas, simulando situações limites, desde a dor extrema até à morte agónica. Chegados a 88, o horror evapora-se de quase toda a dança, mas sem resultados práticos. Revell teve depois melhor sorte, compondo música para filmes como "Até Ao Fim do Mundo" e "O Corvo". Título-chave: Há várias interpretações dos próprios SPK para as iniciais que escolheram por nome: Surgical Penis Klinik, System Planning Korporation e Sozialistische Patienten Kollektiv.Álbum de referência: "Machine Age Voodoo", Elektra, 1984O que eles diziam ("Zigzag", Fevereiro de 1984): "Penso que produzimos terror nas nossas plateias. As pessoas ficam ali especadas de boca aberta, sem perceber o que está a passar."Episódio memorável: num concerto em Dezembro de 93, em Londres, depois de passarem uma hora impassíveis, pegaram em enormes correntes metálicas e começara a fustigar a assistência com elas.Descendência: Skinny Puppy, Front 242, Front Line Assembly, Revolving CocksQuinteto londrino criado em 1982, os Test Dept. emergiram como equivalente britânico da avalanche de caos urbano desencadeado pelos alemães Einstürzende Neubauten. Embora recorrendo à mesma panóplia de instrumentos industriais, os ingleses revelaram-se desde o início mais espectaculares, organizando radicais eventos "multimedia", mas empenhando-se também politicamente na militância anti-Thatcher. Desde "The Unacceptable Face of Freedom" trocaram o metal por percussões marciais, sintetizadores e técnicas rudimentares de corte e colagem. Daí foi um passo até lançarem remisturas dançantes dos seus pesadelos mecânicos, expediente que mantiveram até 1995, ano de que data o seu mais recente álbum de originais, "Totally", seguido de um "Totally, Vols.1-2: Remixes". Álbum de referência: "The Unacceptable Face of Freedom", Thirsty Ear 1986O que eles diziam ("Melody Maker", 29 de Março de 1986): "A dimensão de entretenimento que temos em vista ultrapassará o que a maior parte das pessoas testemunhou nos últimos dez anos."Episódio memorável: em 1985 fizeram uma digressão pelo então Bloco de Leste. Na fronteira entre as duas Alemanhas enganaram-se no caminho. Foram detidos e multados num valor quase igual ao que haviam ganho na digressão. Descendência: Stomp, Front 242, Ministry, Nine Inch Nails O núcleo duro foi formado em Londres, em 1979, por três irmãos especializados em artes marciais, que numa primeira fase alinharam na vaga industrial dos Cabaret Voltaire e dos Throbbling Gristle, com a ajuda dos quais gravaram os primeiros singles. Mas desde os inícios da década seguinte os Skidoo enveredaram por um fusionismo de guerrilha com ritmos étnicos que, entretanto, se alargou ao funk, ao electro e ao hip hop. Editaram três álbuns até se separarem em 1984, mas continuaram a gravar esporadicamente e formaram a sua própria editora, a Ronin, em 1989, onde durante a década seguinte produziram remisturas e música para publicidade. Acabam de lançar um álbum homónimo na Virgin. Título-chave: o nome da própria banda, tirado de uma frase do ocultista Aleister CrowleyÁlbum de referência: "Seven Songs", Fetish 1982O que eles dizem agora ("Mojo", Agosto, 2000): "A ira dos nossos primeiros discos era boa e relevante, mas não precisa de ser repetida. Não nos tornámos menos rebeldes; o que mudou foi a nossa forma de rebeldia."Episódio memorável: a actuação no festival da Womad de 83, em Londres, onde pelas onze da manhã ofereceram uma versão industrial de música urbana do Bali a uma plateia de velhos hippies intimidados. Descendência: Golden Palominos, Photek, Chemical Brothers

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