Um país sem vida intelectual

Há cerca de um mês o pais seguiu a história fabulosa de um comboio cheio de escritores que foi Europa fora à procura da inspiração. "Resmas" de escritores, como agora se diz. Os escritores vindos do frio devem ter achado as estações portuguesas, com os seu azulejos ruralistas, uma grande inspiração, os nossos escritores aspiravam por ver as bétulas dos bosques do Norte e as torres de S. Petersburgo. Pelo meio iam todos animados com as peripécias ferroviárias, imaginando-se Bruce Chatwins em potência, pensando estar de "smoking" a jantar no Expresso do Oriente ou de caqui colonial na Patagónia. As televisões lá foram filmar a partida, nesse sítio excitante que é Santa Apolónia, e presumo que à chegada, nas S. Apolónias russas, o mesmo aconteceu. Da inspiração não se sabe nada.Por detrás deste episódio ridículo, que mostra como hoje se vê a criação literária, está algo que ninguém quer admitir, e com que, no fundo, ninguém verdadeiramente se rala: a completa inanidade da nossa vida intelectual, o grau zero da capacidade crítica, a inexistência de debate e de polémica. A regra é a absoluta ausência, ausência de pensamento, de inquietação, de interrogação. Os nossos intelectuais estão contentes, podem ser um pouco cínicos em casa com os amigos, mas não lhes dá tentação nenhuma de mexer com quaisquer águas. Estão todos empregadíssimos e o dinheiro jorra como nunca jorrou.Há honradíssimas excepções, ignoradas, marginalizadas e a que ninguém presta qualquer atenção. Pode-se concordar ou discordar, mas projectos como o do "Bem Comum dos Portugueses" de Jorge Braga de Macedo, José Adelino Maltez e Mendo Castro Henriques, as revistas do João Carlos Espada e do Jaime Nogueira Pinto, a "Non" do Rui Bebiano na Internet, são os fragmentos sobrantes, isolados e quase autistas, que servem para confirmar a regra. Nada disto chega ao conhecimento do grande público, nem ninguém parece sentir alguma falta.Mesmo os jornais chamados de referência passam ao lado destas coisas. Quando o fazem - tentação que não os assalta muitas vezes - o público castiga-os. Vão ver o que vai acontecer a esse híbrido que é o "Independente" actual do Miguel Esteves Cardoso, parte bela, parte monstro. A parte bela vai ser como agitar o Mar Negro, fazendo vir ao de cima as águas profundas que são letais e venenosas. Os leitores do "Independente", que foram educados pelo dr. Portas a terem escândalos todas as semanas, não gostam. Está-se mesmo a ver a vitória do monstro, da redaçãozinha sobre a política cheia de intriga e processos de intenção.Por razões que têm a ver com o que escrevo, leio muitos jornais, revistas e livros do passado. Não me refiro a um passado muito remoto, mas ao dos últimos cem anos. Por muito enganadoras que sejam as comparações com o passado, há um contraste absolutamente claro entre aquilo que, mesmo que fosse incipiente, um pouco provinciano e de desigual qualidade, era a vida intelectual portuguesa e o pantanal de hoje. E numa altura em que tudo era infinitamente mais complicado: havia censura, havia menos dinheiro e não havia subsídios, tinha que se escrever à mão ou à máquina e corrigir provas de tipografia... Podemos sobrepor a esta realidade todos os critérios de distanciação histórica: a cultura era de elites e não de "massas", o público era urbano e escasso, cercado por um país mergulhado no analfabetismo rural. Podemos inclusive falar de desequilíbrios: tratava-se de uma cultura essencialmente humanística e não científica, havia áreas de vida cultural quase incipientes, a música por exemplo. Podemos dizer que tudo se passava num pequeno círculo e por isso não tem sentido comparar com o grande público dos nossos dias.Mas a maioria das diferenças que se apontam tem a ver com a inexistência de uma sociedade de massas, mediatizada, com a ausência de escolaridade de massas que dá em quantidade para muitos aquilo que supostamente era de qualidade para poucos. Pode aceitar-se tudo isso para relativizar os méritos do passado. Mas mesmo assim permanece uma questão: se antes era para poucos milhares em seis milhões de habitantes, com um fosso abrupto entre esses milhares e os outros, hoje aonde é que estão os continuadores desses poucos milhares? Não era suposto que continuasse a haver uma elite, uma minoria que resistisse ao consumo de massas? Mesmo que fossem os mesmos, onde é que eles estão? Onde estão os homens que comprariam hoje o equivalente aos caderninhos editados por António Sérgio ou por Agostinho da Silva? Os volumes da biblioteca Cosmos? Os leitores que mantinham dezenas de revistas literárias e culturais? Que mantiveram a "Seara Nova" durante mais de 50 anos? Que produziram a "Portucale", a "Prometeu", a "Águia", a "Renascença" Portuguesa, o "Tempo Presente", a "Presença", o "Diabo", o "Sol Nascente", a "Ler", a "Gazeta Literária", ou mesmo a nossa versão nacional do "Readers Digest", a "Ver e Crer"? Onde estão os émulos dos que acompanhavam com entusiasmo polémicas que hoje pareciam absolutamente impossíveis como as que Abel Salazar travou sobre a virtudes do neopositivismo, ou a de Caraça com Sérgio, ou as dos surrealistas entre si, ou, mais recentemente, as do estruturalismo nos anos 60-70.Será que não há nada para discutir? Em Portugal pelos vistos acha-se que não. Já não digo que se debata, como aconteceu com Sérgio, Caraça, Salazar, e outros, as ideias do bispo Berkeley, ou a fundamentação lógica da matemática, ou o "idealismo crítico". Mas porque é que não se discute a sério a Internet, a intervenção da OTAN na Jugoslávia, os massacres do Ruanda, a conquista espacial, a engenharia genética, a crise do Estado providência e... Portugal, o Portugal que desconhecemos cada vez mais. Aquilo que, mal ou bem, os outros discutem como Garcia Marquez, Gunther Grass, H. M. Ezensberger, Elorza, Savater, Chomsky, Glusksman, Wallerstein, etc., etc..Bem ou mal, com tiques nacionais como os franceses, com a brutalidade empírica de alguns americanos ou ingleses, com todos os defeitos possíveis, mas discutem. Verdadeiramente em Portugal discute-se alguma coisa? Nada, zero. Por isso é tão fácil tornar a causa de tudo a má qualidade de política, quando o mal vai mais longe e mais fundo. Tem a ver com a rendição dos nossos intelectuais ao "statu quo", que não é de agora mas já vem de longe e tem-se agravado depois do 25 de Abril pelos efeitos de uma cultura subsidiada - a chave da acção governamental foi subsidiar a "cultura" para usá-la como instrumento de propaganda do poder, "signé" Malraux, via Jack Lang, até chegar aos seus representantes portugueses.É uma cultura do Estado, é uma cultura de contentamento, de auto-satisfação, bem comportada, vai toda jantar em fila indiana com o Presidente. Só que nada diz a ninguém, sobre qualquer coisa que seja.Cansem-se da política, meus senhores, mas olhem que o problema vai mais fundo, mergulha nos hábitos do país e vê-se na intelectualidade dominante. Os hábitos esses são maus. São de complacência e preguiça. E que agora recebem todos os dias o exemplo de cima. Destaque: A chave da acção governamental foi subsidiar a "cultura" para usá-la como instrumento de propaganda do poder. É uma cultura do Estado, é uma cultura de contentamento, de auto-satisfação, bem comportada, vai toda jantar em fila indiana com o Presidente. Só que nada diz a ninguém, sobre qualquer coisa que seja.

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