Perca-sol e achigã destronam bogas e barbos

A fauna piscícola nos rios portugueses está a mudar. A poluição, a construção de barragens e os repovoamentos clandestinos estão a ditar a morte de espécies nativas, como a boga, o escalo e o barbo, e a abrir caminho ao avanço de peixes exóticos, como o lúcio, o achigã e a perca-sol. Este último, altamente predador, apesar de se assemelhar a uma minúscula faneca, constitui já uma praga no Douro e no Tua.

Uma sopa de perca-sol, perca-sol de escabeche, achigã frito com piri-piri, lúcio grelhado. Há poucos anos atrás, invocar estes petiscos nas zonas piscatórias do interior era algo impensável, reservado apenas ao domínio da ficção. Em lugares como a Tua ou a foz do Sabor, na bacia do Douro, os pitéus que converteram estas povoações em paragens obrigatórias para quem gosta de comer peixes do rio eram feitos à base de barbos, bogas, escalos, sáveis e savelhas, lampreias e enguias. Hoje, a tradição já não é bem o que era. A poluição, a construção de barragens, a pesca ilícita e a fúria dos pescadores desportivos introduziram alterações profundas na fauna piscícola e abriram caminho a novos hábitos alimentares. A revolução ecológica em curso é da tal ordem que ninguém se atreve a antecipar as consequências que poderão advir da invasão dos rios interiores e albufeiras por espécies exóticas como a carpa, o lúcio, a perca-sol, a gambúsia, o lúcio-perca e o achigã. Todas elas, à excepção da carpa, são carnívoras e, lentamente, têm vindo a dizimar as populações de peixes autóctones, como o barbo, a boga e o escalo.Fernando Leite, proprietário de um restaurante no Tua que vende "peixinhos do rio", tem 42 anos, pesca desde pequeno e constata a existência de uma nova realidade nos rios onde se abastece - o Tua e o Douro: "A boga está a desaparecer, enguias ainda vai havendo, mas o sável e a lampreia, que vinham desovar aqui, acabaram." Em contrapartida, acrescenta, "há percas aos montes, a achigã é uma coisa impressionante, tal como a carpa, e o lúcio já começa a aparecer".A construção de barragens no troço nacional do rio Douro, iniciada na década de 60, trouxe riqueza ao país, mas ditou a sentença de morte para muitas espécies autóctones, sobretudo as migradoras, como o sável, a savelha, a lampreia e a enguia. Em 1995, Jorge Bochechas, actual responsável pelos serviços da pesca da Direcção-Geral de Florestas, estudou as condições de eficácia das eclusas para peixes nas barragens de Crestuma-Lever, no Douro, e Belver, no Tejo, e chegou à conclusão que os dispositivos instalados nas várias albufeiras dos dois rios não asseguram a livre circulação dos peixes - no caso do Douro, as eclusas, compradas na Escócia, são mais indicadas para o salmão, pois não tiveram em conta a grande variação de caudais existente naquele rio. Os erros cometidos nas primeiras barragens do Douro não evitaram que na última barragem a ser construída, a de Crestuma-Lever, a primeira a contar da foz, fosse cometido um erro ainda maior: a entrada da eclusa para peixes ficou localizada fora da zona de influência do caudal turbinado, pelo que os peixes - que procuram zonas de turbulência - não beneficiam do efeito de atracção daquele caudal. O esturjão foi o primeiro peixe migrador a desaparecer do Douro. Segundo Rui Cortes, professor catedrático da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e especialista no estudo da fauna piscícola, os últimos quatro exemplares desta espécie que ia desovar a Barca de Alva terão sido mortos a tiro nesta localidade ribeirinha. O sável, a savelha e a lampreia levam o mesmo caminho do esturjão. Ainda não desapareceram completamente, mas são cada vez mais raros. Espécies como as bogas e os escalos também têm vindo a regredir de forma vertiginosa. Pescarias diárias de 40 e 50 quilos, tão comuns no Tua há poucos anos, passaram a ser raras, tão raras como a própria existência do rabeco, um peixe muito pequeno, tipo escalo, que fez durante décadas as delícias dos pescadores do Tua e de outras zonas. "Numa noite, um grupo de 12 rapazes chegou a capturar 800 quilos de rabeco, agora nem um há", garante Fernando Leite. O pescador culpa as novas espécies exóticas pela razia de peixes autóctones nos rios interiores: "O lúcio e o achigã comem tudo, mas a perca ainda é pior, porque come as mílharas [ovas] dos peixes na desova."No Douro e no Tua, a perca-sol começa a ser encarada como uma praga. "Os dois rios estão infestados. No Verão passado, em meia hora e sem isco, pesquei umas 40 no Douro. É uma loucura. Até deixei de ir um pouco à pesca por causa disso, só saem percas", diz Jorge Ferreira, pescador amador de Alijó. A mudança da fauna piscícola está a operar-se a uma velocidade de tal modo rápida que os pescadores têm dificuldades em actualizar-se com as novas espécies. "Há dias apanhei um peixe que é transparente, até se vêem as tripas, mas não sei como se diz", conta Fernando Leite. Quando o achigã chegou ao Douro (o primeiro registo da presença deste peixe originário dos Estados Unidos da América ocorreu no rio Côa), quem o pescava atirava-o contra as paredes. Agora já não é assim. Aos poucos, os pescadores foram-se apercebendo que algumas das novas espécies, se forem bem confeccionadas, podem dar excelentes pitéus. O lúcio, por não ter espinhas, e o achigã são os mais apreciados. Mas até a odiada perca-sol começa a ter adeptos. A descoberta das espécies exóticas para a gastronomia e a sua fácil reprodução têm incentivado muitos pescadores a repovoarem todas as massas de águas disponíveis com essas espécies. De Trás-os-Montes ao Alentejo é rara a albufeira que não tenha achigãs, lúcios, carpas e percas. O repovoamento clandestino à base de espécies exóticas atingiu o paroxismo na albufeira de Lamas de Olo, no Parque Natural do Alvão. A diversidade de espécies exóticas é tanta que "aquilo mais parece um aquário", diz Rui Cortes.

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