Almançor, o estratega da guerra santa

A "jihad", ou guerra santa, dominou-lhe o reinado. Uma guerra santa com a Espanha por palco, e que moveu até aos confins do território de infiéis. De entre as múltiplas razias em nome do califado de Córdova, ficou célebre a de Santiago de Compostela, fazendo da cidade uma enorme labareda.

Nesse mês de Agosto de 997, Santiago está em chamas. Montado no seu cavalo, junto à tenda sumptuosa, o incendiário, Almançor, saboreia o espectáculo de longe. Os seus homens arrasaram até à última pedra a rica basílica onde, segundo a lenda, repousam os restos mortais de Tiago Maior. No antigo "campus stellae", o "campo da estrela" (Compostela), que deu o nome à cidade, só o túmulo do apóstolo é poupado, por ordem do vencedor. Há uma semana que Santiago está a arder. Já pode, agora, voltar para casa, retomar o caminho para al-Andaluz. O exército de Almançor parte direito ao Sul. No caminho, ainda destrói algumas praças-fortes, pilha uns tantos mosteiros, até à entrada triunfante em Córdova. Os prisioneiros cristãos que integram o cortejo carregam aos ombros os sinos da igreja de Santiago e os batentes das portas da cidade, para reforçar o vigamento da Grande Mesquita. Dois séculos e meio mais tarde, os sinos farão o caminho inverso, às costas dos cativos muçulmanos.A Andaluzia dos omíadas está então no auge do esplendor. Nunca as suas tropas haviam penetrado até tão longe, e tão facilmente, no coração da Ibéria cristã. O saque de Santiago exalta ainda mais a glória do chefe. De que outra forma poderia ser mais digno do epíteto honorífico que se atribuiu dezasseis anos antes - al-Mansu billah, "o vitorioso", ou mais precisamente, e num rasgo de falsa modéstia, "aquele a quem Alá concede a vitória"? O mundo católico toma conhecimento, consternado, da destruição de Santiago, já então procurada por grande número de peregrinos. A catástrofe fará crescer a fama de devastação associada a Almançor, nome que as romanças cristãs não deixarão de mencionar com pavor durante toda a Idade Média.Muhammad ibn Abi Amir - o futuro Almançor - nasce em 938, no seio de uma antiga família iemenita da Andaluzia que, conta o historiador Will Durant, "tem mais genealogia do que fortuna". Descende em linha recta de um dos raros companheiros árabes de Tariq ibn Ziyad, o chefe berbere que conquistou a Espanha aos visigodos, em 711, combatendo ao lado do governador do Magrebe, Musa ibn Nusayr. O mesmo Tariq cuja gesta está gravada no rochedo de Gibraltar, a que foi dado o seu nome ('Gebel al Tariq', ou 'a montanha de Tariq'). O antepassado, como recompensa pela bravura demonstrada, recebera terras perto de Algeciras. Pertencente à pequena nobreza proprietária de terra, a família dedica-se com mais agrado ao estudo do que ao ofício das armas. O pai de ibn Abi Amir morreu em Trípoli, no regresso de uma peregrinação. A mãe, Buraiha, é uma árabe oriunda de boas famílias. Muito jovem, o filho de ambos deixa a trincheira familiar para ir estudar para Córdova, entregue ao cuidado dos tios. Muito dotado, faz a sua aprendizagem de jurista e homem das letras com mestres reputados.Há dois anos que a Espanha muçulmana onde Amir cresce é governada pela dinastia dos omíadas. Originária, como o Profeta, da tribo dos Quraysh, esta poderosa família de Meca começa por recusar o islão e a partida para Medina. Acaba por reatar os laços com a Profecia, recebe o "califado", a sucessão de Maomé, e instala-se em Damasco, de onde governará o império muçulmano durante perto de um século (661-750). Derrubada por um levantamento, faz transitar o califado para uma nova dinastia, dos abássidas, que escolhe Bagdad como capital. Apenas um príncipe omíada - Abd al-Rahman - escapa ao massacre geral. Personagem romanesca, vai fugindo de aldeia em aldeia, atravessa o Eufrates a nado, chega à Palestina, passa pelo Egipto, alcançando depois Marrocos e Espanha. Com a ajuda dos árabes da Península Ibérica e de contingentes sírios que uma revolta berbere havia expulsado do Magrebe tempos antes, o fugitivo conquista o poder e, em 756, restaura a dinastia dos omíadas em Córdova.Entre os francos, a norte, e os berberes de África, a Espanha, um tanto esquecida pelos califas que desde Kairuan a governavam, torna-se uma ilha árabe resguardada das ameaças dos abássidas. "Daquele umbigo do mundo que era Bagdad", escreve o historiador Gabriel Martinez-Gros, "mal se distinguia o pequeno emirado rebelde dos omíadas, meio perdido nas brumas do oceano." Al-Andaluz, privada de ajuda externa, cessa as conquistas. A linha de frente que separa o Norte cristão do Sul muçulmano estende-se de Coimbra a Tarragona, passando por Segóvia e Medinaceli. Em 909, os ismaelitas, xiitas radicais, apoderam-se do Magrebe e, sob o nome de fatimidas, reivindicam o califado. Vitoriosos no Egipto, aí fundarão o Cairo e se instalarão em 970. Até aqui, os emires de Córdova, embora senhores nos seus domínios, haviam-se mantido tranquilos em relação a Bagdad, rival por de mais poderosa, odiada e invejada. "Se uma mosca zumbe no local mais recôndito da Síria", ironizara um dramaturgo, "os cordoveses prostram-se diante dela como de um ídolo." Figura dominante da dinastia dos omíadas, Abd al-Rahman III (912-961) sente-se com poder bastante relativamente aos fatimidas e aos abássidas - em pleno declínio - para ousar dar o passo: em 929, retoma o título que fora o dos seus antepassados em Damasco. O Islão passa a contar, a partir de então, com três califas. Guerreiro sólido, simultaneamente firme e requintado, apaixonado pela ciência e pela teologia, Abd al-Rahman III não deixará, no entanto, por mãos alheias a sua glória na Terra. Num testamento escrito pelo próprio punho, já às portas da morte, confessará: "Reinei durante 50 anos. Contei cuidadosamente os dias de pura e verdadeira felicidade que me couberam em sorte. Perfazem catorze."Desde a adolescência que Amir se revela menos propenso ao lirismo. Estará já imbuído, como afirmam certos biógrafos mais complacentes, do cometimento a um único objectivo: tornar-se, um dia, o senhor de al-Andaluz? É descrito como um estudante austero, calculador, voluntarioso e diabolicamente ambicioso. "Numa idade em que os condiscípulos não pensavam senão em festejos e folguedos", escreve o historiador Evariste Lévi-Provençal, "o futuro ditador forjava em solidão, e para o longo prazo, planos complicados, que não teriam desmerecido um Maquiavel." Concluída a formação, Amir improvisa-se escrivão público: numa tenda de madeira encostada ao Alcazar, o palácio do califa, redige requerimentos. Depois, é admitido como ajudante de escrivão no pretório do alcaide, a procuradoria-geral, que assinala o talento do novo escriba ao vizir al-Mushafi, chefe da administração civil. Foi a sorte do jovem.Uma antiga escrava basca, de nome Subh, cantora dotada de uma voz maravilhosa, tornara-se concubina do velho califa al-Hakam II e deu-lhe dois filhos que fazem dela a favorita: Abd al-Rahman e Hisham. A mãe dos príncipes procura um aio inteligente, honesto e instruído para o filho mais velho. Amir é o escolhido. Tem 28 anos. Não tarda, passará também a gerir os bens da "grande princesa". Em três anos (967-970), junta a estes cargos as funções, altamente lucrativas, de director da moeda, tesoureiro, curador para as sucessões e alcaide de Sevilha. Depois da morte do príncipe mais velho, aos oito anos de idade, Amir é encarregado da administração dos bens do herdeiro, o pequeno Hisham, cujo nome rescende à velha Síria. Por maiores que sejam os seus méritos profissionais, não é exclusivamente a eles que este homem ambicioso deve o seu ascenso fulgurante: Subh tornara-se sua amante.É certo que o belo rosto de Amir desperta paixões súbitas nas cordovesas. Uma beleza que o poeta Ibn Hazm apresentará como lendária, meio século mais tarde, na sua obra-prima, "O Colar da Pomba", jóia da literatura andaluza. Tendo acesso ao gineceu real, Amir mostra-se muito generoso com as damas, mas sobretudo com Subh, a quem oferece um pequeno palácio em prata cinzelada que Córdova inteira admira. O califa surpreende-se com o poder de sedução de Amir: "Por que hábeis processos conseguirá este rapaz atrair a si todas as minhas mulheres e tornar-se senhor do coração delas?" Demasiado pródigo com os dinheiros públicos, Amir quase deita tudo a perder. Denunciado por dilapidação de fundos, é intimado a justificar-se. Um amigo rico ajuda-o a sair do mau passo, avançando-lhe o dinheiro em falta. Dirige-se então ao palácio, enfrenta os acusadores e prova a sua inocência com tanta convicção que o califa lhe confia a supervisão da polícia urbana, fazendo dele um dos mais altos dignitários do Estado. Na residência sumptuosa que mandou construir, Amir recebe as suas visitas, alarga o círculo de amigos e reconhecidos. Enviado a Marrocos para impor contenção nas despesas, consideradas excessivas, conquista o exército para o seu lado, cria laços de amizade e, uma vez regressado a Córdova, torna-se inspector-geral das tropas mercenárias acantonadas na capital. Tem 38 anos.Em Córdova, como em todo o mundo muçulmano, a mão-de-obra é escrava. Uma multidão de "esclavónios" - como são conhecidos -, na maioria eunucos, não pára na sua azáfama ao redor do califa: aios, mordomos, criados, cozinheiros. A maior parte originários da Europa, capturados pelas tropas germânicas em território eslavo e revendidos depois por corretores judeus ou cristãos, ou directamente arrebatados pelos piratas andaluzes no Mediterrâneo. Ao longo dos vários reinados, os mais bem colocados foram adquirindo, no coração do palácio, estatuto de verdadeiros aristocratas. Alguns, libertados pelo califa, inventam uma filiação fictícia que os liga ao antigo dono. Em Outubro de 976, dois deles recolhem o último suspiro de Hakam II e decidem oferecer o trono a um dos jovens irmãos. Descoberto o "complot", Amir manda estrangular o pretendente escolhido - e que não sabe de nada - diante das suas mulheres. No dia seguinte, o jovem Hisham, que prestara juramento de obediência e fidelidade seis meses antes, é entronizado como terceiro califa andaluz, aos 11 anos de idade, contrariando a tradição do direito muçulmano que exclui a possibilidade de uma criança se tornar monarca. É exibido nas ruas de Córdova, montado num cavalo magnificamente arreado. Amir é nomeado vizir, adjunto do primeiro-ministro al-Mushafi, precisamente o mesmo que lhe estendera a mão.Os dois homens estão de acordo em que é necessário reduzir a influência dos esclavónios do palácio, cuja sobranceria, aliás, deixa os cordoveses irritados. Para se tornar mais conhecido - e apreciado - do exército, Amir empreende uma primeira campanha, em terras cristãs, que financia com cem mil peças de ouro retiradas dos cofres do Estado. As "mãos largas" valem-lhe a simpatia dos oficiais. Apenas uma pessoa, uma única - al-Mushafi -, continua a barrar-lhe o caminho do poder absoluto.Cheirando o perigo, al-Mushafi procura aliar-se a outro homem forte do regime, o general Ghalib, lutando pela mão de sua filha, Asma. Mas Amir antecipa-se-lhe, obtendo esta jovem inteligente e letrada por esposa. A boda decorrerá com pompa e circunstância, e o consentimento de Subh. Detido, despojado dos seus bens, al-Mushafi perde o título de "hadjib" (primeiro-ministro), de que Amir logo se apodera. O cativo nunca será julgado: como se obstina em continuar vivo, acabará, cinco anos depois, por ser estrangulado na prisão.Amir é agora senhor absoluto de Córdova. O adolescente Hisham II ainda não está em idade de governar. Nem nunca chegará a estar. De natureza delicada e dotado para o estudo, o rapaz vai embrutecendo aos poucos, permeável à frouxidão de uma vida de reclusão e efeminada, na devassa prematura de prazeres sensuais que o tornarão impotente. Incapaz de assegurar descendência, não passará de um fantoche. Aquele que deveria ter-se tornado, como os seus antecessores, o poder absoluto, o supremo justiceiro, o árbitro infalível, ficará reduzido a nada, afogado numa torrente de epítetos soberanos, esvaziados de conteúdo, prisioneiro de um rótulo tirânico, isolado no fausto de um protocolo erudito recebido, via Bagdad, da Pérsia antiga, transformado num monarca misterioso, distante, que aparentemente negligencia o seu povo.Quando a mãe de Hisham II se aperceber de que Amir só se havia insinuado junto da família real para saciar o seu apetite de poder, que sacrificou aos seus caprichos amorosos este filho que, pelo simples facto de ter nascido, a tinha, de acordo com a tradição, libertado, e que é em parte culpada por esta catástrofe política, será tarde de mais. Doravante, Subh não mais deixará de votar um ódio tenaz ao antigo amante. Irá tentar, em vão, pôr o filho de novo nos carris, fará sair do Alcazar talhas de barro cheias de ouro, na esperança de assoldar algumas altas personalidades, mas será denunciada. Morreu, esquecida, semanas antes do ano mil."O poder amirida mistura-se com a legitimidade dos omíadas, ao ponto de se confundir com ela", observa Gabriel Martinez-Gros. E, ironia das ironias, acrescenta, "este período amirida é geralmente visto como o apogeu do califado omíada". Suprema habilidade, Amir nunca cederá à orgulhosa tentação de arrebatar o califado ao seu titular, herdeiro legítimo de vinte gerações de omíadas. Nunca contestará o estatuto de Hisham II nem nunca atentará contra a sua vida. Porventura terá este Richelieu árabe pressentido que um gesto sacrílego poderia deitar tudo a perder junto da população de Córdova, com uma forte ligação à velha dinastia. E para quê, se o "hadjib" Amir é califa para todos os efeitos, excepto no nome? Para que não restem dúvidas, escolhe, em 981, um nome verdadeiramente de califa, al-Mansur, que decreta ser de uso próprio exclusivo. Impõe o rótulo real, exige ser chamado "sire", depois "senhor" e "nobre rei". E manda anunciar por toda a parte que o califa, desejoso de se votar por inteiro a uma vida piedosa, delegou nele a gestão corrente de al-Andaluz.Almançor está agora pronto para o grande empreendimento do seu reinado, aquele que lhe dará a glória e o lugar que ocupa na História: a "jihad", ou guerra santa. Nos confins da infidelidade, a Espanha é, à época, o terreno da guerra santa por excelência, onde se pode combater "no caminho de Alá", procurando a morte insigne que garante a salvação eterna. Almançor não irá pois dar tréguas aos infiéis, de Verão e de Inverno, ao longo de 57 expedições. Tornar-se-á o adversário mais temido dos Estados cristãos da Península: Leão, Castela, Navarra e o condado de Barcelona.Não tem como objectivo anexar novos territórios, nem empurrar a fronteira que separa as duas Espanhas. O seu alvo é humilhar o adversário, obrigado a prestar a homenagem devida ao suserano. A destruição de Santiago de Compostela permanecerá a maior catástrofe sofrida pela cristandade ibérica. As expedições de Almançor têm também propósitos mais corriqueiros: extorquir tributos, arrasar tudo o que puder ser arrasado, capturar o maior número possível de escravos - entre os quais as bonitas mulheres francas ou bascas que serão tomadas como concubinas. O afluxo de prisioneiras cristãs submerge temporariamente o mercado de escravos de Córdova. Depois da morte de Almançor, os cordoveses gritarão, emocionados: "Já cá não está quem nos fornecia os escravos!" Num contrato celebrado por um combatente citado por Evariste Lévi-Provençal, aquele compromete-se "a deitar fogo às árvores de fruto dos inimigos de Alá, a destruir as casas deles, a pôr as suas culturas a saque, excepto aquelas susceptíveis de ser levadas pelos muçulmanos". * Exclusivo PÚBLICO/"Le Monde"

Sugerir correcção