A deusa do violoncelo

Chamavam-lhe "Deusamina". O poder de uma Deusa e a fragilidade humana unem-se no diminutivo de Guilhermina. Intérprete inflamada, apaixonada pela música e pela vida, levou auditórios ao rubro e despertou acesas paixões. Guilhermina Suggia, a notável violoncelista portuense, faleceu há 50 anos.

"A cabeça atirada para o lado, os olhos de águia cerrados e as mãos livres para as cordas e para o arco. (...) A interpretação de Suggia não era só para os ouvidos ou para os olhos, mas para os sentidos todos. Toca com uma aura de total absorção e mestria que domina a audiência, levando-a para onde quer." É assim que Fátima Pombo, autora de uma biografia da violoncelista portuense, "Guilhermina Suggia ou o Violoncelo Luxuriante", descreve o seu lendário magnetismo. Com um temperamento arrebatado, na música e na vida, Guilhermina Suggia foi uma das maiores intérpretes do seu instrumento e uma das raras mulheres a fazer carreira internacional como solista na época em que viveu. Faleceu no Porto, há 50 anos, na sua casa da Rua da Alegria. Filha de portugueses, mas de ascendência espanhola e italiana pelo lado paterno, Guilhermina Suggia nasceu a 27 de Junho de 1885, na Freguesia de São Nicolau, no Porto. O seu pai, Augusto Suggia, era violoncelista e rapidamente se apercebeu do talento precoce da filha. Foi ele o primeiro professor da menina-prodígio que, com apenas sete anos, se apresentou no Salão de Festas da Assembleia de Matosinhos e aos 13 se tornou violoncelista do famoso Quarteto Bernardo Moreira de Sá. É também com 13 anos que conhece o grande violoncelista catalão Pablo Casals, contratado pelo Casino de Espinho, onde o seu pai a leva a fim de lhe pedir lições. Casals ouve-a, acha-a magnífica e aceita. Mais tarde, ambos viverão uma intensa, mas atribulada, relação sentimental e artística. Formaram o célebre duo ibérico, aclamado nas grandes salas de concertos europeias, e durante sete anos viveram em Paris, na Villa Molitor, uma casa em permanente vibração onde eram visitados por celebridades das artes e das letras: Dégas, Eugéne Carriére, Romain Roland, Cortot, Enesco, Ravel, Schoenberg... Entretanto Guilhermina tinha estudado em Leipzig, com Julius Klengel (1859-1933), graças a uma bolsa da rainha D. Amélia, que a ouviu tocar num memorável concerto em Lisboa, em Março de 1901. Em Leipzig, o seu brilhantismo tinha rapidamente despertado as atenções e um ano depois da sua chegada, com apenas 17 anos, foi convidada a tocar com a Orquestra da Gewandhaus, sob a direcção de Arthur Nikisch.Em 1914, Suggia instala-se em Inglaterra. Era já uma intérprete consagrada e começou a passar longas temporadas neste país, que amará toda a vida e lhe servirá frequentemente de ponto de partida para as suas "tournées". Quando regressa ao Porto, nos anos 30, é vista como "uma inglesa excêntrica", que usa palavras inglesas, se afasta quando alguém espirra, muda constantemente os móveis da casa e é propositadamente extravagante no vestir. O seu estilo de vida nada tinha a ver com o das restantes mulheres portuguesas da época. Jogava ténis, praticava remo e natação e muitas vezes era ela própria a conduzir o seu Renault preto. Passou também a participar mais regularmente na vida musical portuguesa, formando no final dos anos 40 um duo com Maria Adelaide de Freitas Gonçalves, directora do Conservatório de Música do Porto. Esta decide entretanto fundar uma Orquestra Sinfónica do Conservatório e caberá a Suggia seleccionar os violoncelistas, na sua maioria alunos seus. O concerto de estreia realizou-se a 21 de Junho de 1948, e Suggia tocou como solista obras de Weber, Beethoven, Saint-Säens, Max Bruch e Liszt.A paixão pelo violoncelo leva-a a preocupar-se com o futuro dos jovens intérpretes, deixando indicações por disposição testamentária para que o Conservatório do Porto e a Royal Academy of Music de Londres, atribuíssem anualmente o prémio Guilhermina Suggia ao melhor aluno do curso superior de violoncelo.Suggia tinha um carinho especial pelos seus instrumentos, dos quais dois ficaram especialmente célebres. Em 1946, escreve à amiga Ernestina da Silva Monteiro: "Tive grande alegria ao abraçar o meu 'Montagnana', que está lindo, mas só toco por enquanto no 'Stradivarius' ." O famoso "Montagnana" foi adquirido pela Câmara Municipal do Porto após a morte da violoncelista e entregue ao conservatório da mesma cidade. Recentemente restaurado voltou a soar no decurso da homenagem que a Casa da Música (Porto 2001) promoveu para assinalar os 50 anos da morte da violoncelista. Um ciclo de concertos com o sugestivo título "Guilhermina. Violoncelo. Obrigado", cuja primeira estapa terminou ontem com um recital de Paulo Gaio Lima e uma conferência de Rui Vieira Nery e que contou com a participação dos violoncelistas José Pereira de Sousa e Irene Lima (dias 21 e 25), na interpretação das Suites para violoncelo solo de Bach e de peças para violoncelo de autores portugueses do século XX, além das intervenções de Fátima Pombo e de Mário Cláudio, autor de um romance sobre Suggia (ver PÚBLICO 21/7).A homenagem irá prosseguir em Novembro com mais duas grandes figuras do violoncelo - Misha Maisky, que interpreta o Concerto de Dvorák com a Orquestra Nacional do Porto (dia 21) e Anner Bylsma que dará uma conferência no dia 22 e um recital com as Sonatas para Viola da Gamba, em conjunto com o cravista e organista Bob van Asperen (dia 23).Em 1914, Suggia instala-se em Inglaterra. Era já uma intérprete consagrada e começou a passar longas temporadas neste país, que amará toda a vida e lhe servirá frequentemente de ponto de partida para as suas "tournées". Quando regressa ao Porto, nos anos 30, é vista como "uma inglesa excêntrica", que usa palavras inglesas, se afasta quando alguém espirra, muda constantemente os móveis da casa e é propositadamente extravagante no vestir. O seu estilo de vida nada tinha a ver com o das restantes mulheres portuguesas da época. Jogava ténis, praticava remo e natação e muitas vezes era ela própria a conduzir o seu Renault preto.

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