Lisboa, os dias da noite

E tudo começou com um bar chamado Frágil: nos anos 80, iniciava-se uma nova forma de viver a noite em Lisboa. Luminosa, feita da troca de ideias, com dimensão cultural. Hoje a cidade está diferente. Mais democrática, a indústria do entretenimento toma conta da noite. Sob os céus de Lisboa o DJ é uma das novas estrelas urbanas.

Na próxima 5º feira o bar-discoteca Frágil faz dezassete anos de vida. Nunca foi apenas um espaço nocturno. Nos anos 80 atribuiu vida nova ao Bairro Alto e deu visibilidade a agentes culturais das "margens" que, hoje, se posicionam de forma dinâmica no "centro". Nos últimos anos mudou porque a noite de Lisboa se transformou. Como outros locais da cidade, hoje projecta-se para o exterior, segundo as palavras dos seus responsáveis, "como um espaço experimental onde é possível apresentar artistas e DJs que estejam à frente no campo da inovação da música de dança de qualidade". É por isso que na próxima 5º feira, para assinalar a data, os seus responsáveis convidaram o colectivo de disc-jockeys finlandeses Nu-Spirit Helsinki - projecto constituído por DJs, produtores e músicos de Helsínquia, que grava para a editora americana Guidance e pratica uma música house com influências do jazz e funk. Na primeira metade dos anos 80, no entanto, tudo era diferente. Em Madrid era a "movida". Em Londres formava-se o embrião do que viria a ser o excitante período acid-house das "raves". Em Nova Iorque, depois do "disco" era a música house que predominava nos clubes. Em Lisboa, os veludos dos sofás, os espelhos reluzentes nas paredes e a música de qualidade duvidosa ainda prevaleciam. O Stone's e o Bananas eram os modelos. Em 1982, apareceu o Frágil e tudo se alterou.Para muitos sair à noite ainda era ir beber copos. Felizmente, para outros, a noite começava a ter vida lá dentro. Era a cidade no seu ponto mais frágil, quando esta expunha a natureza dos seus processos evolutivos, os seus equilíbrios e tensões. Era o berço de novos grupos e configurações sociais. A cidade à noite não era, não é, uma coisa. É real e representacional. Ética e estética. Espaço e tempo. É cultura. Não como se de um conjunto de regras abstractas se tratasse. Cultura enquanto algo que se constitui a partir da prática, porque é através dela que se criam espaços de identidade. Nos anos 80 o Frágil exigia uma escolha, uma tomada de posição. Era um modelo de cidade, um estilo de vida, padrões de gosto, modos de sentir, que estavam em causa. Uns aceitavam-no, outros queriam fazer parte dele, outros rejeitavam-no. Mas não são apenas os indivíduos que transformam as suas identidades. As cidades também o fazem e Lisboa nunca mais foi a mesma depois do Frágil.A fama do Frágil fez-se de muitas coisas. Pelo facto de ter sido a partir daí que uma série de novos agentes e comunicadores - criadores de moda, arquitectos, galeristas, artistas ou jornalistas - conseguiram transmitir e construir uma certa ideia de cultura. Pelo mito da entrada ser vedada a muita gente. Por uma selecção musical criteriosa atenta aos desenvolvimentos do estrangeiro. Pelas mudanças de decoração. Pelas festas de aniversários. Pela apresentação regular de espectáculos. E, à frente de tudo isto, por Manuel Reis, o esteta que tem mais jeito em proporcionar prazer aos outros do que falar sobre isso. Rui Vargas, um dos mais conhecidos disc-jockeys portugueses, que começou a sua carreira no Frágil (agora no Lux) nos anos 80 não tem dúvidas: "Quando se entrava no Frágil ficávamos com a sensação que erámos especiais. Mas o Frágil sem o Manuel Reis não seria a mesma coisa. Não conheço outra casa onde o responsável estivesse presente todas as noites a receber a pessoas, para saber se estava tudo bem num gesto de simpatia. O Frágil ajudou a criar a ideia de que a noite não é necessariamente uma coisa decadente. Ajudava a criar aquela ideia de que 'as nossas noites são melhores que os vossos dias'. Pode ser um polo de cultura, de troca de ideias, e não de coisas negativas". A música foi outra das apostas ganhas. "O Frágil foi o primeiro espaço nocturno onde se divulgava música nova" diz Rui Vargas. "Até aí existia apenas a preocupação de passar música da rádio conhecida. No Frágil ouvia-se Cramps, Gun Club, Depeche Mode ou The The. Tudo o que era novo e interessante passava ali".Em Lisboa passavam a coexistir casas de fado e novos locais de design moderno, boites de pendor 'kitsch' e clubes com música de vanguarda, antigos bares e espaços que propunham atmosferas de sonho. Como se tradição e inovação não existissem sob formas absolutas. Tivessem que se articular entre si, reconstruindo o figurino identitário da cidade, que se molda e modifica, quer quanto à sua dimensão estética, arquitectónica, cultural.Lisboa começava a ser imaginada para fora através dessas duas dimensões de si própria. Só, aparentemente, contraditórias. O Frágil não pode ser dissociado da zona onde se insere - o Bairro Alto. O surgimento do Frágil permitiu o recentramento de uma área da cidade considerada como marginal. Depois houve a recuperação da 24 de Julho, das Docas, da zona da Expo e do Cais de Pedra (onde fica situado o Lux e o restaurante Bica do Sapato), mas o Bairro Alto constituiu o exemplo mais eloquente de como uma zona da cidade até aí esquecida podia ser rejuvenescida através de um ambiente cultural jovem onde coexistiam diversas ofertas de consumo cultural. De dia, as lojas de roupa, as lojas de discos, os cafés, as galerias e os restaurantes. À noite, os bares como o Frágil, Três Pastorinhos, Café Concerto, Artis, Nova, Majong, Captain Kirk ou Targus. A partir do Bairro Alto era colocado um ênfase na estetização do quotidiano, na vida artística . E actividades anteriormente tidas como periféricas eram recuperadas para a imagem promocional da cidade, tornando-se símbolos de criatividade e vitalidade. A noite redefinia a paisagem cultural de Lisboa. Mas as cidades sofrem transformações e a sua identidade encontra-se sujeita a processos de contínua reconfiguração. A partir de meados dos anos 90 o Bairro Alto e a noite de Lisboa transformam-se. Democratiza-se. Surgem mais espaços que correspondem a diversas ofertas de consumo. No Bairro Alto, a rua começa a ser ocupada. Surgem os bares de porta aberta e desaparece o mistério de saber o que se vai encontrar depois de transposta uma barreira simbólica. A relação entre os agentes do Bairro e os moradores locais muda. Manuel Reis diz nada ter contra os bares de porta aberta mas reconhece que podem ser um factor de degradação da noite quando situados em zonas habitacionais. E a vontade de começar de novo, noutra zona da cidade, começa a ganhar forma. A festa do 10ª aniversário do Frágil nas instalações da antiga Fábrica da Tabaqueira ou a passagem de ano de 95 no Convento do Beato são indícios de que o Frágil já era pequeno para as ambições do seu proprietário. O projecto Lux junto a Stº Apolónia, começa a ganhar forma e o Frágil muda de mãos. Victor Vicente é uma das pessoas que actualmente dirige os destinos do espaço da Rua da Atalaia. "Tentámos realizar uma espécie de continuação a partir daquilo que o Frágil sempre foi para nós: um espaço sempre diferente. O Manuel Reis ia mudando o Frágil. A ideia que as pessoas guardam do período áureo do Frágil tem a ver com o aniversário dos dez anos. Mas o Frágil não foi só isso. Aquilo que desejamos é uma contínua adaptação aos novos tempos".Mesmo assim, a nostalgia impera. O Frágil, o Bairro Alto, a noite de Lisboa, não estão melhores ou piores do que antes. Estão diferentes. No Bairro Alto e zonas adjacentes cresceram novos bares como a Capela, Clube da Esquina, Wip, Café Suave, Lounge, galerias como a ZDB, nasceram e morreram novas lojas. Tal como o Soho londrino - outro exemplo de reconfiguração da cidade a partir de uma zona esquecida - o Bairro Alto irá passar por diversas fases nos próximos anos. Neste momento, em termos políticos, a cidade que interessa imaginar é outra. A que está virada para o mar. É saudável que assim seja. A transformação de áreas históricas ou zonas ribeirinhas em projectos de lazer-comércio ou projectos residenciais conta com o consumo de um mercado de elite associado a um elevado investimento cultural. Mas, nada nos diz que amanhã a situação não se inverta. A vida das cidades é feita dessas contradições. Um constante fluxo de negociações onde se jogam sentidos, afectos e desenvolvimentos estéticos. Nos anos 90, a noite diversificou-se. Os horários estenderam-se-se, a demografia da cidade sofreu transformações. As docas, a Expo, o Cais da Bica. A noite profissinalizou-se, especializou-se. As escolhas são múltiplas e as estratégias de sedução do público consumidor alteram-se. Os mapas nocturnos da cidade tornam-se labirínticos. A noite africana, a noite 'gay', a noite das mulheres. Mas a projecção dos espaços que continuam a acreditar numa cidade moderna faz-se a partir de duas premissas simples: música e oferta de uma certa noção de espectáculo. Os exemplos mais óbvios são o Lux e o Frágil, mas do Wip ao pequeno Café da Esquina, todos eles acordam para o fenómeno dos DJ e da música de dança. É a partír daí que relançam a sua imagem para o exterior, mesmo se as motivações para sair sejam muitas vezes contraditórias. Com efeito, nos últimos anos a denominada música de dança invadiu o espaço urbano. Transformou-se num dos produtos mais importantes de uma nova indústria do entretenimento. Novos agentes como DJs, músicos e produtores, promotores de festas, produtoras de eventos ou agências de DJs ganharam visibilidade. Simultaneamente novos artefactos como lojas de discos, lojas de roupa ou clubes de música de dança foram-se estabelecendo sem dependerem, aparentemente, de uma indústria cultural."Quando programamos um DJ estamos a vender um espectáculo" diz Rui Vargas acerca do Lux. "Apresentamos o DJ como um artista que vai apresentar o seu trabalho. Ainda existe muita gente que não entende esse tipo de procedimento porque olha para o DJ como 'aquele tipo que está ali a pôr música e a passar discos dos outros'. Nesse sentido ainda existem passos a dar para acompanharmos aquilo que se passa lá fora".Victor Vicente tem uma perspectiva semelhante: "O Frágil tinha uma dimensão artística que não se via em mais espaço nenhum. Hoje está diferente. Funciona também como ponto de encontro, embora um pouco mais 'gay'. Mas essa componente também existiu sempre, embora não tivesse tanta visibilidade. De qualquer forma, a projecção do Frágil hoje faz-se a partir da música. Tentamos introduzir novas sonoridades, mesmo sabendo que nem sempre existe abertura por parte do público".Há dezassete anos todos estes processos eram considerados periféricos, marginais. Nos últimos tempos têm vindo a ser apropriados pelo "centro". Autoridades, instituições, câmaras, governos - ainda ontem o Presidente da República, Jorge Sampaio, na sua presidência aberta fez um périplo pela noite de Lisboa - acompanham estas movimentações, fazendo questão em se associarem a estes fenómenos globais que indiciam tolerância e abertura a novas tendências. E tudo começou com um pequeno bar chamado Frágil.

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