Violência migrante num bairro "negro"

O maior bairro de barracas de Cascais está cada vez mais perigoso. Miúdos brancos passaram a andar de navalha na mochila para se defenderem de outros, negros. As escolas são territórios de grupos.

Há dias morreu um cão no bairro das Marianas, o maior aglomerado de barracas do concelho de Cascais, entre a Parede e Carcavelos. Foi em Junho e o animal caiu baleado no mesmo dia, à mesma hora e no mesmo local em que se encontrava uma criança. A bala encontrou primeiro o cão. Era já noite quando o caso se deu, mas, nas Marianas, nem sempre se espera o escuro para puxar o gatilho. Tem sido assim, continua a ser assim. Mas agora mais do que antes.Ana fixou-se ali em 1979, quando veio de Cabo Verde. Há pouco tempo tempo deu por si a olhar para a marca deixada por uma bala na parede junto à qual, instantes antes, estivera. Mais uma peça de roupa para estender, mais uma palavras trocadas com uma vizinha, e aquele instante ter-lhe-ia sido fatal.A família de Ana é uma das 696 que ainda permanecem no bairro. Dos 807 agregados recenseados nas Marianas em 1993 - aqueles que têm direito a realojamento - apenas 111 já receberam, num lento e moroso processo, casa nova. Entretanto foram-se baralhando os equilíbrios que regiam o bairro. Nas Marianas, o Programa Especial de Realojamento (PER), lançado em 1993 com o objectivo de erradicar as barracas das Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto, só arrancou efectivamente em 1997. Diz a Câmara Municipal de Cascais que deverá estar concluído em 2002. As "casas" desocupadas vão sendo demolidas para evitar a sua reocupação. Há um novo espaço livre no bairro, que não passa despercebido a jovens que vivem mais longe, e que, nestes últimos tempos, sobretudo desde o princípio do ano, passaram a ver as Marianas como território a ocupar. São sobretudo "garotos", dizem moradores mais antigos. "Vêm da Damaia, da Amadora, por causa da droga" - as Marianas têm vindo a ganhar importância como centro de tráfico. Vêm dos mesmos bairros problemáticos de onde emergem esses outros "garotos", alegadamente responsáveis pelos "raids" de que a linha do Estoril tem sido alvo: assaltos no comboio, incursões na praia do Tamariz ou na nova marina de Cascais, por vezes feitos por grupos de dezenas de miúdos, adolescentes e jovens.Desenvolvem-se, assim, dois tipos de delinquência juvenil, articulados mas consideravelmente autónomos: por um lado, os assaltos individuais, protagonizados por pequenos grupos de dois ou três "garotos". Por outro, as grandes acções colectivas, por vezes protagonizados por grupos que podem ser compostos por dezenas de indivíduos, e que assumem características de verdadeiros "raids". Num caso como no outro, a palavra de ordem das autoridades é: "Não reagir". Uma velha sabedoria empírica policial sabe que reagir a um assalto torna, muitas vezes, esse assalto mais violento, "inutilmente mais violento". É um conselho que pode ser razoavelmente compreendido pela população adulta. Mas, entre adolescentes, a lógica da "não reacção" é mal aceite, não só porque contraria a tendência natural para "responder ao desafio", como porque gera rapidamente a percepção de que há grupos vencedores e grupos vencidos nesta guerrilha criada pelo pequeno delito comum.Há algum tempo, um garoto de 12 anos ficou ferido à navalha durante um desses pequenos assaltos entre a escola e a casa. A família só percebeu porque ele sangrava. Mesmo assim, não apresentou queixa: "De qualquer forma eles não fazem nada, e sabe-se lá se não seria pior a seguir". Há algumas semanas, uma moradora de um bairro junto às Marianas foi vítima de outro desses pequenos assaltos: "Apanharam-me em pleno dia, na rua, e um deles tirou-me o fio do pescoço. Tudo se passou num segundo, muito depressa. Eu fiquei paralisada. Não reagi". Também não apresentou queixa. O lento e progressivo esvaziamento das Marianas, resultante do PER, é, assim, compensado por esta nova esta importação de gente de fora. Mais violência e mais insegurança passaram a ser traços do território. Mas Rama da Silva, responsável pelo PER na Câmara de Cascais, diz que não é disso que os moradores se queixam quando vêm vê-lo e, por isso, desconhece o fenómeno, embora reconheça que "a população do bairro mudou muito".O padrão repete-se no vizinho concelho de Oeiras. É o que confirma David Justino, responsável local pelo pelouro da Habitação Social. Mas ele sublinha, no entanto, que Oeiras deixou, nos últimos tempos, de acompanhar a curva de aumento da delinquência juvenil na Área metropolitana de Lisboa.Justino atribui a melhoria relativa ao processo de realojamento. Não que casa nova seja a solução para todos os problemas desta população imigrante, mas porque se tem constatado que, apesar de tudo, "não tem comparação o comportamento das famílias que ainda vivem nas barracas com as que já estão a morar nos bairros sociais". Rama da Silva confirma que o mesmo se passa em Cascais. Os novos assaltantes da "Linha" são cada vez mais jovens, numa espécie de aportuguesação do fenómeno dos "meninos da rua" das favelas brasileiras, como jovens são muitas das suas vítimas, apanhadas nos trajectos entre a casa e a escola. A maior parte destas vítimas, e suas famílias, não apresenta queixa dos assaltos na polícia. Mas muitos vão-se armando. António, que fez agora 13 anos, fala dos colegas que na sua escola, na Parede, passaram a andar de navalha na mochila. Isabel Olavo diz que sabe de casos de "miúdos que adquiriram armas para se defender". E não só navalhas.Quando o PER chegar ao seu termo e Ana receber finalmente uma casa nova, o seu filho mais velho terá 12 anos, passados por inteiro nas Marianas e na escola das redondezas, onde os miúdos como ele são maioritários. Ele, eles, são as vítimas "improváveis". Porque são negros e, portanto, para os outros, os brancos como António, que anda na escola com eles, passaram a pertencer ao grupo dos que vitimam.

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