Uma brincadeira muito a sério

Quem quiser saber como se escreve um romance tem que ler "Por Outras Palavras", de Paulo Castilho: está lá tudo. O diplomata-romancista continua causticamente a arrasar o país literária e politicamente.

O percurso literário de Paulo Castilho - ele que é diplomata de carreira - é dos mais fulgurantes do romance contemporâneo português. Filho de dois escritores, Marta de Lima, pseudónimo de Zulmira Castilho, e Guilherme Castilho, porventura, o mais importante investigador na obra de Raul Brandão, quando se aventurou, em 1983, nas letras com o "Outro Lado do Espelho" ganhou o Prémio Literário "Diário de Notícias". Depois seguiu-se "Fora de Horas", 1989, que concorrendo a par de "A Jangada de Pedra", de José Saramago (o ensaísta Óscar Lopes, à época membro do Comité Central do Partido Comunista Português e membro do júri, chegou a escrever que "ignorava este nome [de Paulo Castilho] como sendo de um romancista"), ganhou o grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, a que juntou o Prémio Pen Club de Ficção e o Prémio Cidade de Lisboa. É obra!Seguiu-se "Sinais Exteriores" em 1993, quatro anos depois "Parte Incerta" e, agora, surgiu "Por Outras Palavras": é um movimento ao contrário; depois da euforia Paulo Castilho (n. 1994), parece ser vítima do sucesso inicial. Ele, nas poucas entrevistas que dá, à semelhança de seu pai, não fica nada preocupado. Mas é uma dupla injustiça: Paulo Castilho é uma das vozes mais estimulantes, inovadoras e diferentes da literatura portuguesa.; e, se não vendeu não sei quantos mil exemplares, "Por Outras Palavras" é um acontecimento literário. É estranho que a crítica académica, ou não, o tenha deixado passar em claro...Entremos no romance, ou melhor: nos cinco - foi os que detectei, o leitor pode encontrar mais - romances que estão no cerne gizado por Paulo Castilho.A abertura é genial. "No fim ficam os livros. De mim nunca ninguém saberá nada porque a escrita é um disfarce. Um labirinto de pistas falsas ao lado de verdadeiras." É tudo falso. É tudo verdadeiro. É tudo romance. Como é que o escritor gere esta embrulhada? Com mão de mestre e, sobretudo, dando um salto (imenso) relativamente aos seus anteriores livros. Se "Fora de Horas", prossegue o gizado em "Sinais Exteriores" que acaba em "Parte Incerta", "Por Outras Palavras" ajusta contas com os romances passados. A história conta-se em poucas palavras: um escritor consagrado, mediático q.b., quer fazer uma autobiografia. Chama-se Falcão, o biografado Falco (uma homenagem explícita a Irene Lisboa, por certo; mas também à sua mãe?) e dar uma mão nos contos. A editora contrata duas pessoas - um deles também escreve: uma homem e uma mulher: Rita e Filipe. O mais importante não é a história em si mesma - como já acontecia nos seus anteriores romances. Está sobretudo, é a sua obsessão, em desvendar e compreender os dilaceramentos da geração que atravessou com 20 anos a década de 60. Geração que acreditou - como quando uma mulher diz a um homem: "tu és o homem da minha vida" - firme, e não desonesta e sem ambiguidades permanentes, na possibilidade de mudar o mundo. E mais do que o mundo, a vida. Paulo Castilho não é um escritor - existem? - naïf.Pelo contrário. "Por Outras Palavras" é um exame (em primeira análise para si próprio) mas, sobretudo, para o quadro romanesco português de hoje. As tácticas (não as estratégias, na diferença estabelecida por Lenine, o político não o cantor...), são múltiplas. A maior de todas - Eça e Cardoso Pires, Agustina e Lobo Antunes andam por perto - é a ironia. Uma deliciosa ironia. Filipe, o narrador, tenta imaginar títulos para o livro do Falcão. Entre outros, tome nota: "Todos os Falcos" (alô Saramago?), "Os meninos de Falco" (está aí Agustina?) e inclusive com ele próprio, Castilho, ele brinca: "O outro lado do Falco".Sem rejeitar o seu passado literário, narrativamente a escrita de Paulo Castilho bebe em Carlos de Oliveira, que, como ninguém, conseguia inventar uma escrita própria, um universo, gizado de frases curtas, sibilinas, mas que com poucas (ou outras) palavras dizem tudo. A economia da escrita, a esta luz, é fantástica. "Por Outras Palavras" é o outro lado de Castilho. Que lado? Não tanto o de se compreender a ele mesmo como autor, é um dado que fica apenas subjacente através das vozes das personagens que constrói, mas sobre o ofício da escrita. É aqui que "Por Outras Palavras" vale vinte valores (na escala de 0 a 20).Quem quiser saber como se escreve um romance tem que ler "Por Outras Palavras": está lá tudo. Castilho dá pistas - por exemplo: como se corta um texto, como se modificam os nomes e os estatutos das personagens, como os ritmos da escrita se modificam conforme se escreve, ainda à caneta, ao computador portátil - com programas para todos os gostos e críticas ferozes às pós-modernidades - com em@il's com um sabor narrativo muito diferente do que é escrever um romance. Ou uma notícia.Se é verdade que o diplomata-romancista (a vice-versa também é verdade...), continua causticamente a arrasar o país, o fresco que faz destes 25 anos de democracia devia ser lido pelos políticos/deputados/diplomatas de todas cores (se percebessem..), a parte incerta da solução continua a ser o amor. Pode dizer-se: é banal. Todavia, nos tempos que correm, quando Marx morreu, Freud também e os milagres de Fátima são, no mínimo, surrealistas, talvez seja a única solução possível. Possível. "Aparece e desaparece como os cometas" (p. 263). Deste ponto de vista, "Por Outras Palavras" é uma brincadeira muito a sério: junta a humildade com o crítica, o humor cáustico com a humildade, uma simbiose digna de um grande romancista. "A função da literatura é incomodar." "Por Outras Palavras" incomoda muita gente. Uma peça genial - independentemente das entrada das personagens em cena, como o escritor gosta de no final enumerar. Depois de "Por Outras Palavras", Paulo Castilho devia escrever um romance sobre a desistência. De uma geração, por certo. Quem sabe, dele próprio...

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