Os tempos de Lucinda Childs

A coreógrafa norte-americana Lucinda Childs é uma figura marcante do minimalismo dos anos 70. No Festival de Dança de Montpellier, a sua companhia dançou peças "históricas" e outras mais recentes. Entre um tempo liso, sem fissuras, vital, e um tempo preso na esquadria clássica das formas.

Quatro bailarinos entram em cena. Param. Um deles dá uma palmada sonora na perna: sinal de arranque. Para uma viagem de eterno retorno, em círculos concêntricos. O movimento desenvolve-se de forma contínua, sem sobressaltos. O tempo de "Radial Courses", uma peça que Lucinda Childs construiu em 1976, é um tempo liso, ficcional, que não encontra paralelo no tempo das histórias humanas. Uma lisura que representa a continuidade não visível da energia vital, a que sustenta as fissuras, as rugosidades da contingência. Coreógrafa norte-americana e figura marcante do minimalismo dos anos 70, a consagrada Lucinda Childs e a sua companhia apresentaram no Festival de Dança de Montpellier dois programas. Com peças "históricas", memoráveis, e com outras mais recentes onde a criadora se refugia num certo classicismo.Marquemos as diferenças. "Radical Courses" é um exemplo maior do minimalismo. A dança é construída com um número reduzido de movimentos simples. Passos acelerados. Pequenos saltos: o corpo eleva-se ligeiramente do chão e cai sobre uma das pernas; a outra, livre, lança-se, esticando-se para a frente, e faz avançar o corpo. A grelha espacial é absolutamente precisa e baseia-se no círculo. Mas nem sempre os bailarinos traçam a figura completa, e cortam-na ao inverter a marcha. Simples, mas só aparentemente. A complexidade, matemática, joga-se na combinação das secções que cada bailarino tem de interpretar - variação das direcções, do momento em que é realizado o salto, etc. "Radial Courses" é dançada em silêncio (dura cerca de dez minutos), o que introduz uma dificuldade suplementar na sua interpretação, mas que não parece ter sido sentida pelos extraordinários bailarinos da Lucinda Childs Dance Company.Do círculo passa-se, em "Dance" (1979), às linhas rectas. A peça dura cerca de sessenta minutos, sobre música de Philip Glass, colaborador habitual de Lucinda Childs na década de 70 - lembre-se que Childs participou como coreógrafa e bailarina na ópera "Einstein on the Beach" (1976), de Robert Wilson e Glass. "Dance" exemplifica bem que as transformações progressivas no movimento, características do minimalismo, e subsequentes alterações rítmicas, são mecanismos de modulação do espaço, e não do tempo, muito embora sejam as grelhas espaciais que se conservem invisíveis. É este o jogo entusiasmante do minimalismo, pelo menos na dança.A peça divide-se em três partes. Na primeira, cruzam-se e interceptam-se linhas paralelas e na perpendicular, realizadas em duetos leves, como que impulsionados por um sopro. A segunda parte é um solo de Lucinda Childs que desenha um mapa de atalhos curtos que conduzem a outros de igual natureza. Uma dança agora mais saltitante, inquieta. Na terceira parte, o espaço abre-se em diagonais e percursos mais longos. O vocabulário é reduzido: as pernas abrem-se no ar como tesouras, e os braços, coordenados, acompanham-nas; há "assemblés" (passo em que as pernas se juntam no ar), "jetés en tournant" (salto das duas pernas sobre uma) .Uma peça de um minimalismo, paradoxalmente, excessivo. Excessivo pela sobrecarga de sinais da mesma natureza, pela redundância que representa a projecção de um filme de secções da peça que se sobrepõe à dança ao vivo (realização de Sol LeWitt). Maravilhosa ilusão de um tempo eterno e sem fissuras.Ainda dois belos solos interpretados pela própria Lucinda Childs: "Commencement" (1995), sobre música de Zygmunt Krauze, interpretada ao vivo no cravo por Elisabeth Chojnacka, em que a bailarina pica o espaço, para depois ser encerrada num estreito corredor delimitado por duas linhas de luz; e "Description (of a description)" (estreia absoluta no festival), em que Childs, agora actriz, interpreta um texto de Susan Sontag, sobre a memória. Mas que dizer do classicismo de "Sunrise of the planetary dream collector" (1998), de "Concerto" (1993) e de "Variété de Variété" (2000), para além de relembrar as excelentes partituras musicais, de, respectivamente, Terry Riley, Henryk Górecki e Mauricio Kagel? Classicismo porque o vocabulário dos movimentos foi rebuscado ao vocabulário da dança clássica, sem notáveis reinterpretações estilísticas ou de sintaxe; classicismo porque as figuras espaciais se fecham em esquadrias que prendem o tempo; porque a frontalidade e o uníssono dominam. Desanimador!

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