Torne-se perito

É só cultura

Os desafios da TV digital reforçam a necessidade de um bom serviço público de televisão. Que marque a diferença com as privadas e trave as transgressões éticas e jurídicas para que tende a concorrência feroz. Quanto à Internet ainda é cedo para regulamentar, mas o debate está aberto. Foi uma conferência promovida pelo Conselho da Europa que lançou as pistas.

O concurso "Só Números" (RTP1, segunda a sexta) não faz sombra a "Quem Quer Ser Milionário?", mas também ninguém estava à espera que fizesse, nem na RTP. O "Só Números" é como aqueles gelados de ananás que se vendem pelas praias: são uma porcaria, mas refrescam.É um concurso tão despretensioso como o seu apresentador, Miguel Dias, um sósia do gordo simpático, «o bola» que há nas turmas de toda a gente quando se é jovem e despreocupado. As perguntas são tolas, giras ou inúteis - ou tudo ao mesmo tempo.Como todos os concursos apresentados nos últimos três anos na televisão portuguesa, o "Só Números" visa proporcionar audiências junto de todas as classes através de processos que permitam aos concorrentes sair do estúdio com a carteira recheada depois de responderem ou fingirem que responderam a perguntas cujas respostas são matematicamente calculadas para proporcionarem ganhos ao indivíduo mais desprovido de conhecimentos.O que chateia não é o concurso, que é inofensivo. O que chateia é o seu produtor, Piet Hein Bakker, dizer que as perguntas «têm uma vertente cultural» e o cessante director de antena da RTP, João Grego Esteves, dizer que o programa «convida à reflexão e à cultura geral» (PÚBLICO, 29.05)Não conheço nenhuma pessoa culta que soubesse responder às perguntas do "Só Números". E não vejo que qualquer das perguntas do concurso consiga por um micro-segundo convidar à reflexão ou convidar à cultura geral. Finalmente, desconheço a relação entre cultura e aquelas perguntas. A propósito: quantos ingredientes entram na composição dos gelados de ananás que se vendem nas praias? Tal como os grupos de conversa vão mudando de caras, também a "Travessa do Cotovelo" foi mudando de elementos fixos (excepto Luís Coimbra), de convidados e de apresentador. Primeiro foi Lúcia Lepecki, depois Fernando Mascarenhas, agora Maria João Seixas.Há um problema com estes programas de conversa na TV e Seixas levou-o para a sua primeira presença no programa: é possível conversar em televisão? A sua convidada Alice Pinto Coelho explicou como são as tertúlias - ou grupos de conversa - no seu famoso bar lisboeta. A diferença, sublinhou, está na ausência das câmaras de televisão. Em casa, espera-se que todas as pessoas dum programa digam coisas interessantes ou divertidas e de preferência de forma agradável. Espera-se que se converse, mas sem se conversar como num café, porque um estúdio com câmaras jamais aceitará uma conversa de café. Espera-se, portanto, uma falsa tertúlia que pareça uma tertúlia. Numa tertúlia autêntica qualquer um pode ter o prazer não só de ouvir os outros como de ouvir-se a si mesmo e em diálogo. Está-se, participa-se. Na televisão, isso só está autorizado aos que estão no estúdio. Em casa apenas podemos ouvir. A tertúlia connosco é, portanto, impossível - excepto se tivéssemos no écrã um grupo de tertuliantes geniais que fosse um enorme prazer ouvir em silêncio. São muito difíceis de encontrar, hoje ou no passado. Aliás, convém não mitificar a tertúlia de antigamente, conversa de café muitas vezes em redor de figuras insuportáveis como aquele que «se desvanecia a escutar-se a si mesmo», que João Gaspar Simões colocou num seu romance lisboeta de finais dos anos 30, onde descreve em detalhe as tertúlias irritantes como parte do pântano em que vive o personagem principal.O êxito da "Travessa do Cotovelo" está, assim, dependente não só da qualidade conversadora dos seus elementos mas, assumindo que esta é mediana, está dependente da forma de conversa que se adoptar. Há ou houve outros programas baseados nas conversas de grupo que funcionaram bem. "A Noite da Má Língua" (SIC), por exemplo, era um deles. Embora a conversa fosse limitada, pois os intervenientes levavam «trabalho de casa», o programa tinha êxito precisamente porque mantinha um elemento de imprevisibilidade na forma como os elementos presentes interagiam.Um programa brasileiro apresentado pelo GNT segue um formato semelhante ao da "Má Língua", mas parece-me funcionar menos enquanto espaço de conversa, pois é mais uma sucessão de monólogos preparados de cada um dos quatro intervenientes. Pode ter interesse, mas não enquanto programa de conversa.Já o programa "Prazeres", apresentado por Francisco José Viegas (RTP1, domingos) se aproxima mais da ideia de conversa. Viegas é menos interventor que Lepecki ou Seixas (Mascarenhas intervinha de menos, o que, não sendo uma qualidade televisiva no papel em que se encontrava, é pelo menos um exemplo de humildade e de civilidade que outros apresentadores de TV poderiam consultar). Nos "Prazeres", além disso, há um maior nível de espontaneidade nas intervenções. A mesa redonda também simula um bar (bancos altos, copos pendurados do tecto) mas não provoca a complicação (às vezes a confusão) visual ainda existente na "Travessa do Cotovelo". Dá-se até um caso curioso: reproduzindo fielmente um bar, a "Travessa do Cotovelo" funciona pior em televisão do que "Prazeres", que criou um espaço cénico próprio, televisivo, inspirado num balcão de bar. Mas o êxito ou fracasso de qualquer um dos programas depende em primeiro lugar do moderador, dos participantes permanentes e convidados. Na tertúlia é mesmo assim: o dono da casa só dá os meios e seduz as conversas. Foi o que aconteceu no segundo "Cotovelo" dirigido por Maria João Seixas em 11 de Junho: a conversa sobre poesia em torno de Camões funcionou em cheio.

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