O poeta da rua das Musas

Se fosse vivo, o poeta José Gomes Ferreira faria hoje cem anos. Uma data que vai ser assinalada com alguma discrição, quer no Porto, onde nasceu, quer em Lisboa, que escolheu para viver. Oportunidade para recordar um autor empenhado em prestar testemunho do século em que viveu.

Faz hoje um século que nasceu o poeta e ficcionista José Gomes Ferreira. Um facto aritmeticamente incontornável, mas que não deixa de causar estranheza. Talvez por ter tido uma vida longa - morreu em 1985 -, talvez por ter publicado relativamente tarde o essencial da sua obra, ou simplemente porque soube conservar até ao fim essa coisa um tanto inefável a que chamamos juventude de espírito, a verdade é que nos parece hoje um pouco esquisito pensar que Gomes Ferreira já tinha 15 anos quando Pessoa e Sá-Carneiro lançaram "Orpheu", e que chegou mesmo a ser colega de liceu do editor da revista, António Ferro. José Gomes Ferreira nasceu no dia 9 de Junho de 1900, na pequena Rua das Musas, no Porto, e iria fazer os possíveis para merecer vir ao mundo sob a protecção de um tão belo nome. Filho de um filantropo portuense de convicções republicanas, Alexandre Ferreira, interessou-se desde criança pela literatura e pela música. Aos 17 anos, compôs um poema sinfónico, "Idílio Rústico", que a Orquestra de David de Sousa executou no Politeama, em Lisboa. No ano seguinte, publicou o seu primeiro livro de poemas - "Lírios do Monte" -, ainda influenciado pela estética saudosista, provavelmente contraída nas aulas de Leonardo Coimbra, que foi seu professor no Porto. Renegou depois este volume, que iria criticar mais duramente do que ninguém: "Totalmente alheio à revolução do 'Orpheu', lancei em 1918 para o caixote de lixo público todos os meus pires desabafos campestres sob o título de 'Lírios do Monte'".Também repudiou o livro seguinte, "Longe" (1921), por este não reflectir as suas "preocupações fundas e verdades principais". Já não era, portanto, a estrita qualidade literária que estava em causa. E, de facto, "Longe" revela, desse ponto de vista, uma evolução muito significativa face à obra de estreia. Alguns versos, como notou o seu biógrafo Alexandre Pinheiro Torres, lembram Sá-Carneiro: "quem reza torna-se em Vago/ fico exilado de mim". Outros, como "ó ondas, estátuas de água/ no parque antigo do Mar!", se podem fazer pensar em Alfredo Guisado, prenunciam também o seu gosto pelas imagens invulgares. A juventude de Gomes Ferreira mostra abundantes sinais de precocidade. Aos 18 anos dirigia uma revista literária, "Ressurreição", onde Fernando Pessoa publicou um soneto. Matriculou-se na Faculdade de Direito de Lisboa em 1918 e, logo no ano seguinte, a proclamação da Monarquia do Norte levou-o a alistar-se no Batalhão Académico. Terminado o curso em 1924, ocupa o posto de cônsul na Noruega em 1926. No início dos anos 30, de regresso a Portugal, torna-se jornalista, crítico de cinema e tradutor de legendas para filmes. É neste período que encontra "a expressão autêntica do poeta autêntico", para citar as suas palavras. O resultado é o poema "Viver sempre também cansa", que a "Presença" publicou em 1931. As técnicas e motivos mais recorrentes da vasta obra posterior de Gomes Ferreira estão já contidos neste texto: o verso livre e um pouco prosaico, as imagens imprevistas, a ironia, a crítica social ("E há bairros miseráveis, sempre os mesmos,/ discursos de Mussolini").Após esta esporádica aparição na "Presença", o poeta esperou mais 17 anos para editar "Poesia I", que passou a considerar o seu primeiro livro. Seguiram-se mais cinco volumes de poemas, sempre intitulados "Poesia" e acrescentados do respectivo numeral romano, a acabar em "Poesia VI" (1976). Em edição autónoma publicou ainda "Eléctrico" (1956), que posteriormente integrou em "Poesia III" e que reúne alguns dos seus melhores poemas. Além de poesia, Gomes Ferreira escreveu vários livros de ficção, crónicas e memórias. As suas "Aventuras de João Sem Medo", inicialmente publicadas em folhetim num jornal infantil, foram publicadas em livro em 1963. As marcas surrealistas que muitos querem ver na sua obra poética, como contraponto de uma inegável dimensão neo-realista, talvez sejam, afinal, mais fáceis de encontrar neste divertidíssimo volume de histórias fantásticas. Envolvido nos mais importantes movimentos de oposição à ditadura salazarista, filiou-se no PCP já após o 25 de Abril, em 1980. No ano seguinte publica o seu último livro de poemas, "A Poesia Continua", que constitui uma espécie de protesto poético contra o país saído do 25 de Novembro. Tem 81 anos e ainda viverá mais quatro. É bem provável que Pinheiro Torres tenha exagerado ao considerar Gomes Ferreira "um dos mais notáveis poetas da língua portuguesa deste século". Os seus versos raramente atingem a "temperatura", para usar uma expressão de Ruy Belo, que assinala a grande poesia. Mas talvez isso não fosse demasiado importante para um autor que desejou, sobretudo, prestar um testemunho verdadeiro de si próprio e do mundo em que viveu. E a verdade nem sempre é simples. "E porque não minto/ sou um labirinto".

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