O fracasso das utopias

Actores no papel de personagens intemporais, à volta de uma Távola Redonda, na descoberta dos grandes mitos europeus. "Merlim", um texto de Tankred Dorst sobre a utopia da igualdade entre os homens, sobre as imperfeições do mundo, sobre a pulsão da morte. É a 60ª criação de O Bando.

Bando, Vale de Barris, 20h30, ensaio de 2 de Junho, sexta-feira. Calor, música ao vivo, mosquitos, a noite a cair, fogo, motas sobre a terra batida, fumo, um pé torcido, frio, Merlim, Cavaleiros da Távola Redonda, Percival, Rainha Ginevra, Lancelote, João Brites, Rei Artur, o Diabo, amores e morte. Estamos no espaço do teatro, em frente a uma antiga exploração pecuária desactivada, transformada em sede de um dos mais importantes grupos portugueses: O Bando na sua 60ª criação com a peça "Merlim" de Tankred Dorst, estreada ontem naquele lugar cheio de "terra deserta", lugar de utopias, de travessias e de compromissos.De um lado está a estrada estreita que vem de Palmela (2 km) e dá para a encosta da serra, do outro os moinhos e algumas casas, ao fundo Palmela subindo até ao castelo. Estamos num vale magnífico, um tanto deixado ao mato, entre oliveiras e malmequeres, também muito tojo. É Vale de Barris.Quando se chega ao sítio do teatro, uma máquina de cena, uma enorme estrutura de ferro em forma de pirâmide distingue-se na paisagem. Parece uma instalação para um enorme circo, qualquer coisa de fantástico, de saltimbancos, de pirotécnico. Jogar com os espaços sempre foi a arte do Bando e, neste caso, também uma das ideias de Tankred Dorst.Uma hora antes do ensaio, os actores, extenuados pelo calor intenso da tarde, comeram um apetitoso guisado de esparguete com carne bem à portuguesa, salada, fruta, vinho, café. É ali, naquele espaço da antiga pecuária que o grupo vive o seu dia-a-dia teatral. É ali dentro da ex-pocilga e anexos que estão o atelier, o camarim, a recepção, o armazém. Cá fora, num contentor de alumínio, as sanitas unisexo fazem uma performance atribulada com os autoclismos. Um lavatório com sabão aguarda os visitantes para uma lavagem de mãos. É que no intervalo do espectáculo que dura três horas e meia o grupo serve, a quem queira, uma sopa de pedra que vai sendo cozinhada na altura, além de queijo, pão e vinho da região. Um aroma de deuses!Às 20h15, o encenador João Brites grita: "Toda a gente lá em baixo já vestida dentro de um quarto de hora!". Toda a gente são os actores, os técnicos, os músicos, estes por sinal excelentemente comandados pelo maestro e compositor Jorge Salgueiro."Vamos começar, já passa da hora!", diz o encenador já sentado numa cadeira de plástico, vestindo um casaco, indicando que vai ficar fresco para a noite."Vamos começar até ao diálogo entre o Diabo e o Merlim. Depois passamos para cena de Lancelote com a Rainha Ginevra que inicia com a deixa de Percival, "És mesmo parvo!", grita Brites.Mal sabia o encenador que a Ginevra (Andreia Pinheiro) iria torcer um pé numa corrida pelo mato entre bandeiras de guerra, já a noite caía em grande cavalgada e o castelo de Palmela ao fundo, aceso, parecia um lugar mágico onde certamente - imaginamos nós- se escondiam os Cavaleiros da Távola Redonda. "Já tivemos pés torcidos, acidentes de mota, um braço partido, que mais irá acontecer", diz João Brites, sabendo que os grandes espectáculos são sempre de alto risco.A Rainha Ginevra, mais tarde, já cerca da 23h, aparecida ao pé coxinho, acabou por dizer o papel estendida numa cadeira, fora de cena, a descansar o inchaço, ao lado do encenador e da sua assistente Joana Brandão. Ginevra vira-se, então, para o Rei Artur (João Ricardo) que está em cima de um casota, junto à pecuária, coloca a voz e diz: "Mata-me, pega no teu punhal e arranca-me o coração!". O Rei Artur havia falado dos ideais antigos da Távola Redonda, com desânimo, já que agora "tudo o que se alcança é apenas uma etapa que já contém em si a morte". E falaram do "ingénuo" Lancelote do Lago, com quem a rainha anda a trair o rei, o que vai encontrar o Graal, o melhor de todos os cavaleiros que vão ficar "perdidos em terras estranhas e sucumbir em lugares desertos por causa o Graal".Um sino toca na oliveira que serve de toldo aos músicos. O espectáculo vai, por fim, começar. São quase nove horas. As personagens correm para o centro da estrutura metálica onde um caldeiro arde ao fogo. Gritam por Merlim, Merlim, Merlim. E ele nasce e é ele quem diz para o Diabo: "Desaparece, Satanás! Diz o que quiseres! Eu vou fundar a Távola Redonda!", o mesmo Merlim que havia dito antes "Vou ficar preso num espinheiro branco", já numa referência à amada, Viviana, a ninfa da floresta (Dolores de Matos) por quem se apaixona desastradamente.Quem é este "Merlim" de Tankred Dorst, um mágico filho de um Diabo (Carlos Cóias) e de uma Prostituta (Ana Brandão), uma Maia de nome Ana que faz desabrochar as paixões?"Merlim é um pássaro e também não é um pássaro!", diz Mordrete (Miguel Moreira). "É um pensamento que passa pela cabeça a voar", diz Lancelote (Romeu Costa). "É uma coisa que muda de forma!", diz Lamoraque (Vítor Santos). "É o artista, no sentido do criador de arte, é a personagem da morte, é o diabo da morte!", diz João Brites. "É o infinito, a vontade da utopia, a pocura da perfeição", diz ao PÚBLICO o actor Horácio Manuel, no papel de Merlim.É uma visão filosófica e contemporânea de Tankred Dorst a partir da lenda do rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda, em que se questiona a utopia da igualdade entre os homens, propondo reflexões acerca da imperfeição" da natureza humana. É uma visão desencantada de Dorst. Como ele diz: "É a história do nosso mundo, o fracasso das utopias". Talvez retratado nesta frase de Rei Artur, dita a Merlim: "Porque vejo tudo a desmoronar-se à frente dos meus olhos. Parece que as nossas ideias deixaram de ter qualquer encanto(...) Agora, Merlim, é só discórdia, vingança, morte!"Nesta altura, já o pôr-do-sol havia desaparecido por completo para lá dos moinhos, os pássaros avisavam para os ruídos da noite, ouviam-se os ralos e o cheio do fumo lançava-se pelo vale, tal como os gritos dos actores espalhados por tudo o que é sítio, sempre com o castelo sobranceiro anunciando outros tempos, de lendas, mistérios e mortes."Porque é que há guerra? Porque é que nada está resolvido? Existirá um sentido para a vida?" São questões que o encenador levanta a partir deste texto com que ele se "identifica de uma forma tão intensa", um texto filosófico sem ser erudito que "podia ser elaborado para cinema e que parece esgotar a grande problemática da natureza humana".Para João Brites, como disse ao PÚBLICO, "Merlim" é um "espectáculo charneira, o regresso a uma linha essencial para o grupo", de que destaca "Os Bichos" e "Montedemo", e significa, por outro lado, "a abertura de um novo ciclo". A máquina de cena colocada no caminho é, para Brites, "essa linha de passagem que liga o passado ao presente".A meia-noite chegou rápida, o frio tomou conta do lugar, os actores encostam as motas e, de novo grávida, Ana que tinha dado à luz Merlim, deixa a sua voz ecoar por cima dos cânticos de guerra, com alguma esperança: "Como amo o mundo inteiro, vou-me transformar em Deus. Sou uma menina que passa a vida a cantar. Lálálá. O que é que isto quererá dizer? Acho que sei. Nada é mau, tudo é alegria". "Merlim" é o segundo espectáculo do Bando, neste espaço de Vale de Barris. Em Dezembro passado estreou-se com a "A Porca", a partir do livro de Marie Darrieussecq, "Estranhos Perfumes". É uma co-produção com o Teatro Nacional S. João para o PoNTI 2001.

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