"Xuto" legal e vigiado em Madrid

A iniciativa não foi consensual, mas acabou por vingar. Situada numa zona muito frequentada por toxicodependentes, a nova "narco-sala" da capital espanhola tem todas as condições das congéneres europeias já existentes. E mais algumas. Para inverter os resultados ainda tímidos, impõe-se agora vencer a barreira da desconfiança.

À semelhança do que acontece com outras cidades europeias, também Madrid dispõe, desde quarta-feiraf+b,f-b de um centro de acolhimento de toxicodependentes. Além de reunir as condições de higiene que lhes permitem drogar-se em segurança, a nova unidade conta ainda com assistência médica. Está situada nos terrenos baldios de Las Barranquillas, na zona de Vallecas, a cerca de um quilómetro de um bairro-de-lata conhecido como um dos maiores supermercados de droga da cidade. Uma área feia e inóspita, como o é o quotidiano das centenas de toxicómanos que ali passam a poder ir buscar a dose diária."A iniciativa destina-se a dar dignidade aos que a não têm. É um primeiro passo para os ajudar a deixar a sua dependência e envolver num processo que reduza os perigos" a que estão sujeitos, considera José Ignácio Echániz, responsável da saúde do governo regional de Madrid, entidade que comparticipa com 50 por cento neste projecto inovador. A verba restante, até um montante de 140 mil contos anuais, é cedida pelo Plano Nacional sobre Drogas de Espanha. "Enquanto na Suíça e na Holanda as 'narco-salas' apenas oferecem aos toxicómanos condições de higiene para se poderem drogar, esta estrutura proporciona assistência médica, contando com a participação de profissionais de saúde, assistentes sociais e um assessor jurídico", explica Ignácio Echániz.Na véspera da abertura do novo pavilhão, situado num terreno outrora ocupado pelas ruínas de uma vacaria, foi pedido aos jornalistas para, a partir do dia seguinte, deixarem de circular na zona, a fim de não coibirem os toxicodependentes de se aproximarem. "Nas primeiras semanas, o objectivo é ganhar a confiança deles, pelo que encaramos a possibilidade de comprar um ou dois todo-o-terreno em segunda mão para os irmos buscar ao bairro e evitar que tenham de percorrer um quilómetro a pé", precisou José Cabrera, director da Agência Antidroga do governo regional de Madrid. Este psiquiatra foi o mais entusiasta defensor da iniciativa, que, no entanto, suscitou muita polémica.No período que decorreu entre o anúncio da criação da "narco-sala", em Junho do ano passado, e a sua entrada em funcionamento, no dia 24, vários entraves surgiram. A primeira oposição veio da Câmara de Madrid, que, pela voz do seu presidente, fez saber que discordava do projecto - apesar de este já então contar com o apoio oficial do Plano Nacional de Drogas. Mais recentemente, já com o terreno comprado e o módulo projectado, foi a vez de o primeiro-ministro espanhol, José Maria Aznar, então em campanha eleitoral (eleições de 12 de Março), pôr em causa a utilidade da iniciativa. "É muito discutível", comentou. Na altura, o presidente do executivo autonómico de Madrid, o também conservador Alberto Ruiz Gallardón, respondeu secamente que ao seu líder "faltavam dados para compreender o problema".Aberta 12 horas por dia, entre as 9h e as 21h, a "narco-sala" conta com 22 funcionários, entre médicos, enfermeiros, assistentes sociais, um assessor jurídico e pessoal auxiliar. Instalada num pavilhão prefabricado, a estrutura dispõe de dez cabinas para os drogados poderem injectar-se ("dar o xuto"), uma enfermaria, duas salas de espera, três casas de banho e quatro gabinetes para consultas. O acesso só é permitido a pessoas maiores de idade que não transportem consigo mais do que uma dose. Quem o desejar pode requerer uma análise qualitativa da substância, cujos resultados, graças aos meios técnicos existentes, ficam disponíveis em escassos cinco minutos. Os técnicos pretendem, deste modo, evitar mortes por "overdose". O consumo pode depois ser feito com recurso a material esterilizado."Em breve, haverá instalações onde os toxicómanos poderão tomar banho, lavar roupa e sentir calor humano, para melhorar as suas condições de vida", anunciou Echániz na sessão de apresentação do novo pavilhão à comunicação social, no dia 23. A possibilidade de, no futuro, ali vir a ser facultada heroína - a droga de maior consumo na zona - está dependente de um parecer favorável das Nações Unidas, da criação de um programa deste tipo na União Europeia e da autorização das autoridades espanholas. "Se isso vier a verificar-se, pensamos aderir, com todas as cautelas, ao projecto", admite o responsável pelos serviços de saúde do executivo regional madrileno. No primeiro dia de funcionamento do centro de Las Barranquillas, mais de 50 toxicodependentes passaram por lá. Entretanto, foi encontrado mais um cadáver na zona, dentro de um carro abandonado: tratava-se do corpo de um homem de cerca de 40 anos cuja autópsia revelou ter sido vítima de "overdose".

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